sexta-feira, 30 de abril de 2010

O mestre do afeto - Rolando Toro - (Texto: Liane Alves; Revista Bons Fluídos)


Criador da biodanza, a dança da vida, o psicólogo chileno Rolando Toro nos fala por que o desenvolvimento da afetividade e do amor é o grande desafio deste século.


Ele tem 86 anos. Mesmo assim, sua voz é firme, tranquila, e sua lucidez, impressionante. Porém, o que Rolando Toro mais transmite no contato pessoal é a afetividade. Ele tem amor pelo seu trabalho, que faz há mais de 60 anos, pela humanidade, que o motivou a elaborar um método que aliviasse seu sofrimento e, mais do que tudo, pela vida. Sempre está aberto para aprender com ela e até hoje aprofunda sua compreensão sobre como a dança, a música e o contato em grupo atuam no corpo, na mente e no espírito.

“A biodanza é um sistema de integração humana, de renovação da vitalidade e de reeducação afetiva. Ela também é um reaprendizado da sensação ancestral de estarmos ligados à vida e fazermos parte de um universo vivo e dinâmico”, diz Rolando. “Essa sensação de pertencer a tudo que está vivo foi perdida em nossa cultura. A civilização atual, considerada racional e objetiva, nos roubou a vivência plena dos nossos sentidos, a vitalidade, a afetividade e até mesmo uma espiritualidade mais enraizada”, diz ele. “Somos seres despedaçados, desconectados, que pensam de um jeito, sentem de outro e atuam numa terceira direção.”

Hoje, existem mais de dois mil grupos de biodanza em todo o mundo e um instituto — o International Biocentric Foundation (IBF), com sede em Santiago, no Chile — dedicado a pesquisar a aplicação da cultura biocêntrica, que fundamenta a biodanza, em áreas diversas, como a educação, a psicologia e a saúde. O método é ensinado em todos os continentes, mas tem grande força na Itália e no Brasil. A biodanza foi introduzida há 40 anos no país e tem duas escolas de formação de professores em São Paulo: a Escola Paulista de Biodanza, dirigida por Maria Luiza Appy, e a Escola de Biodanza da Zona Sul, sob a direção de Teresa e Mauro Lima. Além das escolas, os professores por elas formados criam outros grupos, atuantes em todo o Brasil.

Qualquer pessoa pode fazer a biodanza, não é necessária nenhuma experiência anterior. “Não é uma dança formal, com uma coreografia que tem de ser aprendida. Pelo contrário, vamos recuperar a naturalidade e a espontaneidade que há em nós”, diz Monica Vilhena, professora de grupos de biodanza em São Paulo.

Veja agora, na entrevista de Rolando Toro para a revista BONS FLUIDOS, como podemos desenvolver nossa afetividade e também o nosso potencial de amor através do corpo, da música e da dança.



BF Como surgiu a biodanza?
RT
Minha sensação é de ter procurado realizar durante muitos anos o trabalho de aumentar a afetividade no ser humano. Somos mais cerebrais, e em nosso mundo a inteligência não está unida ao afeto. E isso tem consequências terríveis. Refleti muito sobre como elas foram marcantes durante a Segunda Guerra Mundial, que produziu acontecimentos catastróficos, como o Holocausto e o lançamento de bombas em Hiroshima e Nagasaki, no Japão. Percebi que vivemos numa sociedade doente, em que a vida não é considerada sagrada. Os princípios ideológicos pairam sobre os relacionados à vida, que celebram o amor, a comunhão com os semelhantes, a solidariedade. Busquei por muitos caminhos uma maneira de fazer essa mudança, que precisava ser tanto individual quanto coletiva. Parecia uma quimera sonhar com a formação de um novo ser humano, mas sempre fui estimulado pelo impossível.

BF Como o senhor acha que a sua formação de antropólogo o ajudou na criação dos valores da cultura biocêntrica, que alicerça a biodanza?
RT
Sou psicólogo, com especialização em antropologia médica. Isto é, meu trabalho é refletir sobre como a cultura de uma sociedade influi na saúde ou na doença do indivíduo. Atuei em hospitais psiquiátricos no Chile com essa função, além de ter sido encarregado de procurar soluções que melhorassem a relação médico-paciente, para que ela se tornasse mais humana. Lembre-se que venho do tempo dos eletrochoques, das lobotomias (intervenção cirúrgica no cérebro para curar doenças mentais graves). Tinha de lidar com aquela realidade brutal e procurar transformá-la.

BF E o que o senhor fez, então?
RT
Uma das ideias que tive foi de fazer um baile para congregar os pacientes. Escolhi as músicas que considerei as melhores, todas calmas, melódicas e até mesmo melancólicas. Eles se arrumaram, houve um movimento de recuperação da autoestima e da dignidade. Alguns até se apaixonaram durante o baile. Mas, depois, de madrugada, muitos entraram em surto psicótico. As enfermeiras ficaram enlouquecidas. Nesse momento, vi como a música tranquila, na verdade, tinha estimulado a eclosão do estado psicótico. Isto é, esses pacientes já estavam regredidos, deprimidos, sintomas que são característicos da psicose, e esse tipo de situação os deprimiu ainda mais. Fiquei chocado com a influência da música na psique. Mais tarde, fiz outra festa, com músicas e danças alegres, rítmicas. Os pacientes dormiram como anjos.

BF Como foi feito o trabalho de recuperar movimentos e danças que celebrassem a vida em diferentes culturas?
RT
As culturas tribais conservam os movimentos naturais, intuitivos, que expressam as emoções. Com elas, aprendi que existia uma espécie de matriz corporal e gestual universal ligada a cada um dos sentimentos. Expressá-las fazia muito bem ao ser humano e era uma forma esplêndida de entrar em contato com o mundo afetivo interno e assim desenvolver nossa afetividade atrofiada. Minha proposta tem a finalidade de resgatar a “selva interior” de cada um, pois considero necessário ver as manifestações instintivas sob uma perspectiva de exaltação da vida e da graça natural.

BF Qual a relação entre vida e afetividade?
RT
A afetividade é o potencial inato que garante a conservação da vida. A vida se torna sagrada porque a amamos. Vivemos um vazio existencial que tentamos preencher com a busca incessante de juventude, beleza, conforto e consumo, distanciando-nos muito do essencial, que é a vivência do amor, da união, da empatia e da solidariedade.

BF Por que vivemos numa sociedade tão agressiva e tão pouco nutridora de afeto?
RT
No fundo, o que todas as pessoas querem é apenas amar e ser amadas. Porém, é exatamente isso o mais difícil de acontecer hoje, pois vivemos numa civilização em que as emoções e os sentimentos são bloqueados. Ela pretende ser racional, quando na verdade é apenas absurda. A inteligência não está mais unida à afetividade e é ela que nos faz sentir parte do todo. Também é o afeto que nos dá alegria de viver, a sensação de nos sentirmos vivos, ligados à natureza e aos outros seres humanos. Por isso não temos mais emoção ao vermos a morte de 100, 200 mil pessoas numa guerra. Não consideramos mais a unidade, não a vivenciamos. Nosso mundo fez progressos tecnológicos maravilhosos, como construir um avião de 200 toneladas que levanta voo e nos leva a outros países, e a internet, que nos dá acesso a informações de todos os gêneros. Mas, infelizmente, essa tecnologia não está a serviço do desenvolvimento da emoção. Falta-nos um outro tipo de formação e compreensão para podermos vivêla, e a tecnologia não nos dá isso.

BF Como surgiu a biodanza?
BF Essa dissociação sempre aconteceu ou é uma característica dos nossos tempos?

RT As primeiras civilizações, alicerçadas no matriarcado, tinham outra dimensão da afetividade, pois a nutriam constantemente e sabiam de sua importância. A mulher é uma geradora de vida e a ela é dado o papel de alimentar as relações, primeiro da família, depois do grupo e da comunidade. Ela é nutridora de afeto, de entendimento, de compreensão. Por ter em si essa capacidade de gerar, alimentar e nutrir, tem também um respeito inato pela vida. Com o surgimento do patriarcalismo, isso mudou. O foco não é mais dirigido à vida, mas ao poder, à competição, à guerra. Os homens não estão interessados na felicidade, no amor, e sim no poder. E é nessa civilização patriarcal que nasce o machismo, o massacre da mulher e dos valores associados a ela. Considero o machismo uma doença mais grave que a esquizofrenia e o câncer, pois não destrói só o indivíduo, mas sociedades inteiras. Stálin queria construir um paraíso social, e para isso matou 20 milhões de pessoas. Hitler queria uma nova civilização, e na Segunda Guerra morreram 40 milhões de seres humanos. Os homens não sabem governar.

BF Mas essa situação não pode se transformar?
RT Sim, aos poucos, já está mudando. Está nascendo um novo homem, mais inteiro, mais sensível, mais amoroso, que integra, sem medo, seu lado feminino ao masculino. Mas é preciso uma nova educação, uma nova pedagogia para que esses homens sejam em maior número, pois ainda são poucos. Essa tarefa é desenvolvida na International Biocentric Foundation, que usa o conceito do amor à vida na dança (biodanza) e em outros campos do desenvolvimento humano.

BF Como a neurociência avalia os efeitos da biodanza?
RT Os resultados são espetaculares. Vemos, por exemplo, que os efeitos de uma música eufórica, rítmica, podem durar até por oito, nove minutos depois do término da dança. E que os efeitos de uma dança romântica, com olhos nos olhos, podem permanecer por até 24 horas! São diferentes deflagrações hormonais, de durações diversas. A natureza das mudanças que ocorrem no indivíduo também varia. Mas podese dizer, com base em pesquisas científicas, que a proximidade de um outro ser humano já nos modifica. Não estou falando que as emoções que uma pessoa provoca em nós nos modificam, mas que nossos processos internos mudam completamente apenas com a presença de alguém, tal a nossa sensibilidade para o outro. Acontece uma relação energética invisível, com uma linguagem invisível, que nos influencia. Também há diversos estudos sobre as carícias e como elas afetam os seres humanos. Mas, em resumo, quanto mais afeto recebemos, mais somos capazes de dar afeto.

BF Quem não recebeu amor ou cuidado durante a infância, por exemplo, como fica?
RT Pessoas adultas que tiveram uma infância carente podem recuperar boa parte do seu afeto praticando a biodanza. Sou suspeito para falar disso, é claro, mas posso afirmar com total segurança que os efeitos são extraordinários.




UMA AULA DE BIODANZA COM ROLANDO TORO

Numa sala de 150 metros quadrados, um grupo de 50 pessoas ouve atentamente seu mestre. São praticantes e professores de biodanza que se reúnem toda vez que Rolando Toro vem ao Brasil. A maioria já faz parte do grupo há alguns anos, mas também há aqueles que estão ali pela primeira vez, como eu. Sinceramente, não sei o que esperar. Uma parte de mim está ansiosa: será que vou conseguir fluir com os outros? Após breves palavras, Rolando conduz uma rápida meditação. Faz, em seguida, alguns exercícios simples para relaxar o corpo e se dirige ao gravador que está ao lado de uma caixa com centenas de CDs. Como um DJ da psique, o antropólogo começa a aula com músicas alegres oriundas do mundo todo. Ele faz alguns movimentos que traduzem aquela alegria — são as matrizes, isto é, os passos que geram e expressam determinadas emoções e sentimentos. Ele fala sobre a emoção que a música irá provocar, o sentimento com o qual vamos entrar em contato. Logo em seguida, cada pessoa repete esses movimentos à sua maneira. Ainda não formamos pares, mas ele logo sugere que cada um escolha alguém para dançar, apenas por uma única música. Depois, todos trocarão de parceiro, e assim até o final. Há mais mulheres que homens e, por insegurança, prefiro escolher uma moça de olhar doce e amistoso. Coincidentemente, a música e os movimentos propostos são destinados a expressar a doçura da amizade. Fazemos movimentos de mãos dadas, dentro do que foi sugerido pela matriz. Fluo com incrível facilidade, assim como ela. E realmente nasce uma sensação de conforto, cumplicidade e segurança, exatamente o que nos proporciona o sentimento da amizade. Outras matrizes serão propostas durante a aula. Há aquelas que recuperam o amor filial, outras, o amor maternal, ou, ainda, nosso lado infantil. Em algumas dessas vivências há muita proximidade — fiquei pensando como reagiria alguém que fosse excessivamente tímido. No entanto, parece que a timidez pode ser ultrapassada com a própria energia do grupo, que é muito amorosa. No final, todos aplaudem o mestre Rolando Toro. Saio dali nutrida de afeto.


Fonte: Revista Bons Fluidos - edição janeiro/2010.

Um comentário:

T.Lacerda disse...

MEU "MESTRE do AFETO", ROLANDO TORO!
O MUNDO TORNOU-SE MELHOR com a PRESENÇA deste SER HUMANO INCOMPARÁVEL!
GRATIDÃO!