terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Depressão - (Monja Coen)

"Sem vontade de fazer nada. Sem vontade de levantar. Para quê? Fazer comida? Limpar a casa? Procurar trabalho? Amanhã. Hoje não. Dá para ver um pouco de televisão. Dá para chorar e rir. Chorar é mais fácil.


Lê o jornal e "Que mundo horrível!". Não dá vontade de fazer nada. Um amigo convida para o cinema. "Hoje não, tenho compromissos." Compromisso com a cama, com o sofá, com o suco, a comida que pede por telefone.

Só em questão de absoluta emergência tem de se vestir para ir ao banco. Toma banho, "Ah! Que delícia!".

As roupas ficaram apertadas. E agora? Veste com o zíper aberto, um casaco por cima. Uh! Para o sacrifício da rua, das pessoas, do mundo sujo e torpe, sem esperança, sem motivação, sem nada.

Como se fosse branco-e-preto o colorido do céu azul, a nuvem branca, a parede vermelha, a roupa verde, o sol dourado, a criança correndo, a senhora de bengala, o executivo apressado no celular sem parar.

Caixa de banco olha para a fila e suspira. Chegou mais um. Ninguém me ajuda. Disseram que o caixa eletrônico resolveria. Devagar vai atendendo - afinal, tem tanto tempo e precisa não errar.

Na fila já se irrita. Demora demais, que horror. Pensa que eu tenho todo o dia? Cara fechada, ranzinza. Briga com um e com outro e se autoconfirma: "O mundo não presta, as pessoas são más".

Volta para casa com sacolas de compras, de roupas, comidas, revistas, livros, CDs e DVDs.

De novo se enfurna na internet. Joga paciência, procura amor virtual ouvindo música alto, cantando, para afastar o pranto. Conta piada no telefone, reclama das contas, das pessoas, do desemprego, das dificuldades. Retorna para a TV, para o DVD, para a cama - ninho precioso, local abençoado, livre de tudo e de todos.

Encolhe-se de lado e dorme. Sonha com anjos e lobisomem. Campos de flor- e trovadores. Campos arados e queimados. Bombas, pavores, amores, tremores. Vira do outro lado e sonha.

Se um dia sonhasse que acordava. O que perceberia?

Depressão é passageira. Mesmo que esteja na direção, no controle central. Vem e vai. Não se apegue. Não a segure. Deixe-a partir. Ela sai de leve se você pára de reclamar. Se olhar para fora de sua gaiola. A porta está aberta, a grade é de vento.

Será que Buda saberia ajudar a acabar com a depressão? A pessoa até quer sair dessa trama, mas não consegue. Está amarrada, presa, enroscada. É infeliz, sofre demais, doença danada.
O que é saúde? Cinco frutas por dia, dizia um senhor ao meu lado. Apenas a garça voando baixinho de volta ao ninho.

De repente, abre a janela, respira fundo, parece que ela se foi.

Arruma o quarto, guarda as roupas, leva outras para a lavanderia, toma banho, se veste, lê o jornal, toma café, sai para levar o pobre do cão a passear. Cumprimenta as pessoas, sorri.

Aquece-se com o sol. Árvore frondosa abraça e se firma. Vai fazer cursos, procura emprego, namora e se entrega à vida sem medo.

A depressão se foi.

Tudo é possível, mas fica uma sombra: E se ela voltar?

Não adianta fechar as janelas, pôr tranca nas portas, se esconder em algum altar. Ela pode voltar.

Então a receba, com dignidade. Conhecida deprê, venha me ver. Estou preparada para recebê-la. Conheço sua manha, suas trapaças. Conheço bem os seus disfarces. Já não me controla, já não me derruba, apenas me deixa com mais algumas rugas."


Autor: Monja Coen
Fonte: Livro - Sempre Zen

domingo, 23 de janeiro de 2011

Criatividade - (Osho)

"A criatividade significa simplesmente que você está em estado de relaxamento total. Não significa inação, mas sim relaxamento - porque, com o relaxamento, ocorre muita ação. Mas isso não é obra sua - você é apenas um veículo. Uma melodia começa a ecoar por seu intermédio - você não é o criador dela, ela vem do além.


Ela sempre vem do além. Quando você a cria, sua criação não vai além do ordinário, mundano. Quando ela vem por seu intermédio ela tem beleza sublime, traz em si algo de desconhecido.

Quando o grande poeta Coleridge morreu, ele deixou milhares de poemas inacabados. Frequentemente perguntavam a ele: "Por que você não termina esses poemas?" Pois a alguns faltavam apenas algumas linhas para serem terminados. "Por que você não os termina de compor?"

Ele respondia: "Não posso. Eu tento, mas quando termino de compor, parece faltar algo, alguma coisa parece estar errada. Minha linha nunca se harmoniza com a que flui por meu intermédio. Ela se torna um tropeço, uma rocha, e impede-lhe a fluidez. Assim, tenho que aguardar. Quem quer que tem fluído por intermédio de mim, quando ele começar a fluir outra vez e completar o poema, ele estará terminado; antes disso não."

Ele terminou apenas uns poucos poemas. Mas eles são de sublime beleza, de grande esplendor místico. Sempre foi assim: o poeta desaparece, a criatividade aparece. Nessa ocasião, ele é possuído. Sim, essa é a palavra, ele é possuído. Criatividade é ser possuído por Deus.
Simone de Beauvoir disse: "A vida se ocupa com a própria perpetuação e a superação de si mesma; se tudo que ela faz é manter a si mesma, então viver é apenas não morrer." E o homem que não é criativo está apenas não morrendo, só isso. Sua vida não tem profundidade. Sua vida ainda não é vida, mas apenas um prefácio; seu livro da vida ainda não começou a ser escrito. Ele nasceu, é verdade, mas ainda não está vivo.

Quando você se torna criativo, quando permite que a criatividade flua por intermédio de você - quando você começa a cantar uma canção que não é sua, que não pode assinalar nem dizer: "Ela á criação minha"; sobre a qual você não pode por sua assinatura - então a vida cria asas e desfere voos.

Na criatividade está a superação; de outro modo, nós podemos continuar, no máximo, a nos perpetuarmos tal como somos. Você cria uma criança - isso não é criatividade. Você morre e a criança fica para perpetuar a vida, mas perpetuar-se não basta, a menos que você comece a superar a si mesmo. E assa superação só ocorre quando algo do além entra em contato com você.

Esse é o ponto de transcendência - superação. E, na superação, o milagre ocorre; você não existe, contudo, pela primeira vez, você existe."


Autor: Osho
Fonte: Livro - Criatividade - Liberando Sua Força Interior

sábado, 15 de janeiro de 2011

Tonglen - Remando contra a maré - (Pema Chödrön)

"A prática de tonglen reverte a lógica habitual de evitar o sofrimento e buscar o prazer. Nesse processo, nós nos libertamos de padrões muito antigos de egoísmo. Começamos a sentir amor, tanto por nós mesmos quanto pelos demais; passamos a cuidar de nós mesmos e dos outros. Tonglen desperta nossa compaixão e nos faz conhecer uma visão muito mais ampla da realidade.


Para sentir compaixão por outras pessoas, precisamos sentir compaixão por nós mesmos. Precisamos nos preocupar, principalmente, com as pessoas que sentem medo, raiva, inveja, que são dominadas por todo tipo de vício, que são arrogantes, orgulhosas, mesquinhas, egoístas, más — você pode escolher. Ter compaixão e carinho por elas significa não fugir da dor de encontrar essas características em si mesmo. De fato, toda a nossa atitude diante da dor pode mudar. Em vez de rechaçá-la e de nos escondermos dela, é possível abrir nosso coração e nos permitirmos sentir essa dor, senti-la como algo que nos abranda, purifica e nos torna muito mais amorosos e bondosos.

A prática de tonglen é um método para nos conectarmos com o sofrimento — nosso próprio sofrimento e o que nos rodeia onde quer que possamos ir. É um método que nos leva a superar nosso medo da dor e a dissolver a dureza de nosso coração. Acima de tudo, faz despertar a compaixão que é inerente a todos nós, não importa quanto possamos parecer cruéis ou frios.

Iniciamos essa prática recebendo em nós mesmos a dor de alguém que sabemos estar em sofrimento e desejamos ajudar. Se sabemos que uma criança está sofrendo, por exemplo, inspiramos essa dor, desejando que ela se liberte totalmente do pesar e do medo. Quando expiramos, enviamos felicidade, alegria, ou o que lhe traga alívio. Esta é a essência da prática: inspiramos a dor do outro, para que ele possa sentir-se bem e ter mais espaço para relaxar e abrir, e expiramos, transmitindo relaxamento ou aquilo que sentimos que pode trazer alívio e felicidade.

Freqüentemente, entretanto, não conseguimos realizar essa prática porque nos vemos frente a frente com nosso próprio medo, nossa resistência, raiva ou qualquer outro sofrimento pessoal que esteja presente.

Nesse momento, podemos mudar o foco e começar a praticar tonglen por aquilo que estamos sentindo e por milhares de pessoas que, como nós, naquele exato momento, sentem precisamente a mesma impotência e angústia. Talvez sejamos capazes de dar um nome à nossa dor. Reconhecemos claramente o terror, repulsa, raiva ou desejo e vingança. Então, inspiramos por aqueles que estão dominados pelas mesmas emoções e irradiamos alívio ou qualquer outra sensação que proporcione espaço para nós mesmos e para essas incontáveis pessoas. Às vezes, não conseguimos dar um nome ao que estamos sentindo. Mesmo assim, podemos perceber sua presença — um aperto no estômago, uma certa opressão ou o que quer que seja. Simplesmente entramos em contato com o que estamos sentindo e inspiramos, trazendo-o para dentro de nós e fazendo isso por todos. Então, enviamos para fora alívio para todos.

Diz-se, freqüentemente, que essa prática contraria o padrão costumeiro que usamos para não desmoronar. Na verdade, a prática de tonglen realmente se opõe à nossa tendência habitual de querer tudo ao nosso próprio modo, de desejar que tudo dê certo para nós, independente do que aconteça aos outros. Ela desfaz os muros que construímos ao redor de nosso coração, as camadas de autoproteção que lutamos tanto para criar. Usando uma linguagem budista, podemos dizer que dissolve a fixação e o apego do ego.

A prática de tonglen reverte a lógica habitual de evitar o sofrimento e buscar o prazer. Nesse processo, nós nos libertamos de padrões muito antigos de egoísmo. Começamos a sentir amor, tanto por nós mesmos como pelos demais; passamos a cuidar de nós mesmos e dos outros. Tonglen desperta nossa compaixão e nos faz conhecer uma visão muito mais ampla da realidade. Ele nos apresenta a amplidão ilimitada de shunyata. Quando o praticamos, começamos a nos conectar com a vasta dimensão de nosso ser. Inicialmente, deixamos de dar tanta importância a tudo e nossa experiência passa a ser menos sólida do que parecia.

A prática de tonglen pode ser feita para os que estão doentes, para os que estão morrendo ou já morreram, para todos aqueles que, de alguma forma, estão sofrendo. Tonglen pode ser praticado como uma meditação formal, ou em qualquer lugar e a qualquer momento. Estamos passando e vemos alguém em sofrimento — ali mesmo, começamos a inspirar essa dor e a exalar alívio. Ou então, ao ver alguém sofrendo, podemos desviar o olhar. Esse sofrimento desperta nosso medo ou raiva, nossa resistência e confusão. Portanto, naquele exato momento, podemos praticar tonglen por todas as pessoas que, assim como nós, desejam ser corajosas, mas são covardes. Em vez de nos punirmos, podemos usar nossos próprios entraves como o primeiro degrau para compreender o que outras pessoas, no mundo inteiro, estão enfrentando. Inspirar por todos nós e expirar por todos nós. Usar o que parece veneno como remédio. Podemos usar nosso sofrimento pessoal como um caminho em direção à compaixão por todos os seres.

Quando praticamos tonglen no momento em que nos deparamos com o sofrimento, apenas inspiramos e expiramos — inspiramos a dor, exalamos a amplidão e o alívio.

Quando praticamos tonglen como uma meditação formal, devemos seguir quatro passos:
1. Em primeiro lugar, descanse sua mente por alguns segundos em um estado de abertura ou quietude. Esse estágio é tradicionalmente chamado de lampejo do bodhichitta absoluto, ou de súbita abertura à amplidão e clareza fundamentais.
2. Em seguida, trabalhe com a textura. Inspire o calor, a escuridão e o peso — a sensação de claustrofobia — e expire serenidade, claridade e leveza — a sensação de frescor. Inspire profundamente, por todos os poros, e expire, irradie completamente, usando todos os poros de seu corpo. Faça isso até que essas sensações estejam sincronizadas com sua inspiração e expiração.
3. No passo seguinte, trabalhe uma situação pessoal — qualquer situação dolorosa que seja real para você. Tradicionalmente, começa-se praticando tonglen por alguém com quem nos preocupamos e que queremos ajudar. Entretanto, como já mencionei, quando seus próprios problemas o impedem de prosseguir, você pode realizar a prática pela dor que está sentindo e, simultaneamente, por todos aqueles que, como você, passam pelo mesmo tipo de sofrimento. Por exemplo, se está se sentindo incapaz, inspire essa sensação, por si mesmo e pelos outros que estão no mesmo barco, e exale confiança, sentimento de ser capaz ou de alívio, da forma que desejar.
4. Finalmente, torne esse processo mais abrangente. Se você está praticando tonglen por alguém que ama, estenda a prática a todos aqueles por quem nutre o mesmo sentimento. Se está praticando por alguém que viu na televisão ou na rua, faça o mesmo por todos os que estão em situação semelhante. Não se limite a uma única pessoa. Talvez já seja suficiente praticar por todos aqueles que, como você, estão dominados pela raiva, medo, ou por qualquer outro sentimento que também o aprisione. Entretanto, em todos esses casos, você pode ir além. Você pode praticar tonglen por aqueles que considera inimigos — aqueles que o ferem ou ferem alguém. Faça tonglen por eles, pense neles como dominados pela mesma confusão e impotência que vê em si mesmo e naqueles que ama. Inspire a dor deles, expire alívio.

A prática de tonglen pode ser infinitamente ampliada. À medida que pratica, gradualmente e ao longo do tempo, verá que sua compaixão naturalmente se expande, e o mesmo acontece com a percepção de que as coisas não são tão sólidas quanto você pensava. À medida que pratica, gradualmente e em seu próprio ritmo, ficará surpreso ao perceber-se cada vez mais capaz de ajudar os outros, mesmo em situações que pareciam insolúveis."


Fonte: Quando tudo se desfaz: orientação para tempos difíceis, autoria: Pema Chödrön.
Tradução: Helenice Gouvêa.

O poder de realização - (Lenda)

"Conta certa lenda, que estavam duas crianças patinando num lago congelado.

Era uma tarde nublada e fria e as crianças brincavam despreocupadas.

De repente, o gelo se quebrou e uma delas caiu, ficando presa na fenda que se formou.

A outra, vendo seu amiguinho preso e se congelando, tirou um dos patins e começou a golpear o gelo com todasas suas forças, conseguindo por fim quebrá-lo e libertar o amigo.

Quando os bombeiros chegaram e viram o que havia acontecido, perguntaram ao menino:

- Como você conseguiu fazer isso? É impossível que tenha conseguido quebrar o gelo, sendo tão pequeno e com mãos tão frágeis!

Nesse instante, um ancião que passava pelo local, comentou:

- Eu sei como ele conseguiu.

Todos perguntaram:

- Pode nos dizer como?

- É simples - respondeu o velho.

- Não havia ninguém ao seu redor para lhe dizer que não seria capaz.



Fazer ou não fazer algo só depende de nossa vontade e perseverança! "

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Sobre amor - (Deepak Chopra)

"Seja qual for o relacionamento que você atraiu para dentro de sua vida, numa determinada época, ele foi aquilo de que você precisava naquele momento. Repare: nada é por acaso. Nós nos colocamos em uma espécie de “trilha”, que sempre esteve aí, o tempo todo, à sua espera. Você elegeu seu destino. A vida que você tem que viver é essa mesma. Você não consegue mudar o que não consegue encarar. Por isso, onde quer que você se encontre, é exatamente onde precisa estar, neste momento.


Quando você estiver pronto para fazer uma coisa nova, de maneira nova, você fará. Há sempre alguém à espera da pessoa na qual você está se transformando. Talvez, você ainda não esteja pronto para reconhecê-la. A cada momento, cada um de nós está passando pelo processo de Ser e de se tornar. Como as pessoas, os nossos relacionamentos também mudam. E ainda há muito a aprender sobre AMOR ..."

A menos que você seja amoroso consigo mesmo... - (Osho)

"Ame-se, respeite-se, seja gentil consigo mesmo. A menos que você seja amoroso para consigo mesmo, você não pode ser amoroso com ninguém, absolutamente. A menos que você seja atencioso consigo mesmo, você não pode ser atencioso com ninguém; é impossível.

Eu lhe ensino a ser realmente egoísta, de modo que você possa ser altruísta. Não há contradição entre ser egoísta e ser altruísta: ser egoísta é a própria fonte de ser altruísta. Mas até agora você tem aprendido exatamente o oposto, lhe ensinaram o contrário.

E qual tem sido o resultado desse ensinamento? Ninguém ama ninguém. A pessoa que se condena não pode amar ninguém. Se você não pode amar nem sequer a si mesmo - porque você é a pessoa mais próxima a você -, se seu amor não pode nem mesmo alcançar o ponto mais próximo, é impossível seu amor chegar até as estrelas. Você não pode amar nada - você pode fingir. E é isso que a humanidade se tornou: uma comunidade de fingidores, hipócritas.

Por favor tente entender o que quero dizer por ser egoísta. Primeiro você tem que se amar, se conhecer, ser você mesmo. A partir disso, você irradiará amor, ternura, atenção com os outros. A partir da meditação, surge a verdadeira compaixão, mas a meditação é um fenômeno egoísta. Meditação significa deleitar-se consigo mesmo e com sua solitude, esquecer o mundo todo e simplesmente deleitar-se consigo mesmo. É um fenômeno egoísta, mas desse egoísmo surge grande altruísmo. E, então, não há nenhum vangloriar-se a respeito, você não se torna egoístico. Você não serve as pessoas; você não as faz sentir-se devedoras a você. Você simplesmente se deleita em compartilhar seu amor, sua alegria."


Fonte: OSHO, Guida Spirituale, # 13

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Sem medo de ser feliz - (Revista Bons Fluidos; Texto: Raphaela de Campos Mello e Ilustração:Jana Magalhães)


A cada passo dado você sente que a felicidade se afasta alguns metros? Não, você não está perseguindo uma utopia. Talvez esteja, inconscientemente, queimando chances preciosas de se realizar. Por isso, queremos convidá-la a repensar as próprias atitudes para, quanto antes, ser capaz de interromper o ciclo destrutivo da autossabotagem.


Imagine-se no gramado de um campo de futebol em plena final de Copa do Mundo. A torcida urra, eufórica. Cabe a você bater o pênalti que decidirá o título. Você treinou e acertou esse chute centenas de vezes, no entanto, na hora decisiva, a bola passa a metros da trave. Frustrante, para não dizer desolador. Pois é exatamente isso o que muitas vezes fazemos com a felicidade. Por medo dos riscos e das responsabilidades inerentes à vida, em geral temores inconscientes, arremessamos nossa realização para escanteio quando, na verdade, queríamos marcar um golaço. Esse ato chama-se autossabotagem. Perigosa armadilha que tentaremos desativar nas próximas linhas.

Você deve se lembrar da espinha que apareceu bem na ponta do seu nariz no dia da formatura do colegial, da gripe que acometeu sua colega na véspera daquela importante reunião, da tendência da vizinha para se apaixonar por homens que não a valorizam. Atitudes forjadas por uma parte de nós que não nos vê como merecedoras do sucesso, ou, então, que subestima nossa capacidade de lidar com as atribuições coladas aos louros da vitória.

Pela lógica, essa conta não fecha. Se desejamos do fundo da alma obter êxito no maior número possível de setores da vida, por que atuamos contra nossos próprios intentos a ponto de boicotá-los? Ora, porque, a princípio, não fazemos ideia de quanto estamos nos prejudicando. “Muitos, ou a maior parte, desses destrutivos comportamentos estão quase que totalmente fora do domínio da consciência”, afirma o psicólogo americano Stanley Rosner, coautor do livro O Ciclo da Auto-Sabotagem – Por Que Repetimos Atitudes que Destroem Nossos Relacionamentos e Nos Fazem Sofrer (ed. BestSeller). “A autonomia, a independência e o sucesso são apavorantes para algumas pessoas porque indicam que elas não poderão mais argumentar que suas necessidades precisam ser protegidas”, diz o autor.

O filósofo e psicanalista paulista Arthur Meucci, coautor de A Vida Que Vale a Pena Ser Vivida (ed. Vozes), enxerga nesse processo uma fraude psíquica da pior espécie: os chamados ganhos secundários. “Há jovens que saem de casa para tentar a vida, enquanto outros permanecem na suposta zona de conforto, porque continuam sendo alvo da atenção dos pais e ainda se eximem de enfrentar possíveis dificuldades da fase adulta”, afirma Arthur. O problema é que, se aterramos dessa maneira amedrontada ad infinitum, não decolamos, não nos desenvolvemos plenamente. “Todo mundo busca a felicidade, a questão é ter coragem de viver, o que significa correr riscos e assumir responsabilidades, sabendo que não podemos controlar a vida, a grande angústia do ser humano”, diz ele.


Reformulação do olhar
Em alguns casos, o gatilho da autopunição está na lente, há tempos desfocada, através da qual enxergamos o mundo e a nós mesmas. O trabalho, então, é ajustá-la para que a pessoa possa identificar suas potencialidades e se apropriar delas. “Tendemos a conhecer mais o que não gostamos ou o que os outros não gostam em nós e a conhecer muito pouco aquilo que em nós existe e é bacana, bonito, valoroso”, diz a psicoterapeuta paulista Lilian Frazão, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), especialista em gestalt-terapia, corrente que compreende o indivíduo em sua totalidade e inserido no ambiente em que vive.

E pensar que essa tal felicidade cantada em verso e prosa pode estar muito perto de nós e ainda assim permanecer invisível simplesmente porque nossos olhos ainda não estão programados para ver além dos automatismos e de nossas crenças um tanto nebulosas. “Não raro buscamos a felicidade no lado inverso de onde poderíamos encontrá-la. Queremos ser bonitos, elegantes e inteligentes como os outros e assim deixamos de ser o que naturalmente somos”, afirma Lilian. Com isso, ela emenda, nos desalojamos do lugar mais confortável que poderíamos habitar: nossa própria pele. “É muito mais fácil ser o que sou e ser feliz assim do que tentar ser o que não sou”, diz.

Só vamos entender o que nos leva a assumir posturas depreciativas quando pararmos para avaliar nossa trajetória e, sobretudo, nossas relações familiares, com a ajuda de um analista ou terapeuta. Que tipo de herança emocional carrego que, de tão pesada, me impede de gozar a vida? Eis um bom começo para essa investigação, segundo o terapeuta familiar e sexólogo argentino Bernardo Stamateas, autor de Autossabotagem: Reconheça e Mude as Atitudes Que Você Toma contra Si Mesmo (ed. Academia de Inteligência).

“Todo mundo busca a felicidade, a questão é ter coragem de viver, o que significa correr riscos e assumir responsabilidades, sabendo que não podemos controlar a vida, a grande angústia do ser humano”,
Arthur Meucci, filósofo e psicanalista.

“Os valores transmitidos pela família muitas vezes formam crenças negativas que precisam de nossa valentia para serem reconhecidas e superadas”, ele afirma, e acrescenta: “Filhos que foram condicionados pelos pais a se sentir merecedores de satisfação somente depois de estudar ou cumprir determinadas tarefas se tornam adultos que se acostumam a postergar a felicidade”, exemplifica Stamateas.

Não se trata apenas de adiar o aguardado fim de semana na praia ou a ida ao restaurante predileto. A privação pode se estender a conquistas mais relevantes. “Quem não tem permissão para ser feliz, quando obtém algo positivo, imediatamente faz alguma coisa para perdê-lo. Se arruma um namorado, o trata mal para que ele vá embora, se consegue um bom trabalho, não cumpre o horário para justificar uma demissão”, constata o terapeuta.

De acordo com Meucci, outro comportamento preocupante e que aparece com frequência em seus atendimentos é a identificação com as insatisfações paternas ou maternas. “Filhas de mulheres divorciadas costumam sentir a frustração da mãe por não ter conseguido levar o casamento adiante e, às vezes, para não humilhá-la, sabotam inconscientemente o próprio casamento ou noivado, afastando-se do parceiro de várias maneiras”, diz o psicanalista. Segundo ele, tão difícil quanto reconhecer essa solidariedade deturpada é olhar para os próprios defeitos e limitações. Se a mulher atrai um certo perfil de parceiro sucessivamente e sempre se queixa disso pelos mesmos motivos, o que é muito comum, provavelmente o problema não está nos eleitos. “No fundo, ela quer que os outros mudem, mas não ela própria. E, para a transformação, é preciso aceitar que você também tem defeitos. Isso é muito difícil, especialmente para pessoas narcisistas, que se preocupam em demasia consigo mesmas e sentem dificuldade de se colocar no lugar do outro”, afirma o psicanalista.

Desativando a bomba
O tema desta reportagem é um tanto assustador, mas não insolúvel. Pode respirar. Na visão dos estudiosos da psique, consciência e mudança estão intrinsecamente ligadas. Eles avisam que revolver lembranças e situações desagradáveis é dolorido. Também são realistas ao assegurar que leva tempo até conseguirmos digerir nossas experiências, fazer novas associações e, por fim, implementar mudanças significativas em nossa vida. Mas, se tivermos paciência e vontade de nos aprimorarmos, a jornada vale muito a pena. “A parte mais delicada desse processo é converter o reconhecimento em uma mudança de comportamento, porque esse não é um exercício intelectual. Se o reconhecimento não for internalizado, sentido e elaborado, nada vai ser alterado”, diz Stanley Rosner.

Bernardo Stamateas também entende o mergulho interior como uma etapa primordial sem a qual jamais poderemos retornar à superfície mais leves e reformuladas. “Precisamos nos desvencilhar de todos os mandatos de culpa e nos dar permissão para sermos felizes”, afirma ele. Essa virada vem após identificarmos conscientemente atitudes que até então guarneciam a torcida adversária alojada em nosso próprio ser. Passamos, assim, a policiar ações e palavras que certamente iriam nos afastar de nossos propósitos. Não mais alimentado, o mecanismo do boicote, enfim, se desmancha. “Quando a pessoa desvenda as causas da autossabotagem, consegue se entregar para a vida”, diz Meucci.

Mas, prepare-se para experimentar uma reação em cadeia. Afinal, não vivemos saltando de um compartimento estanque para outro. Trabalho, casa, lazer, amores. Tudo isso está interconectado. Logo, se mudamos nosso jeito de nos posicionar em determinada área, as demais também serão afetadas. Suponhamos que uma pessoa tenha descoberto que está num relacionamento problemático e não queira mais se submeter a essa dinâmica. Assim que se tornar mais altiva na esfera amorosa, também se mostrará mais assertiva no campo profissional. “As artimanhas psíquicas que usamos em casa e no trabalho são as mesmas: o jeito de negociar, de lidar com funcionários e filhos, de dar ordens”, diz Meucci. Por isso, ele entrega, costuma ser angustiante demolir nossa concepção de sujeito para que possibilidades mais saudáveis sejam erguidas dos escombros.

O que vale é saber que só assim conseguiremos nos apossar de nossos pontos fortes e, confiantes, “exercer o que temos de melhor”, nas palavras de Lilian. No entanto, ela salienta, não podemos menosprezar ou, pior ainda, negar a dor, parte indissociável da existência. “Uma situação pode ser ruim e boa ao mesmo tempo. Nesse sentido, o sofrimento é uma passagem necessária que evidencia aspectos que precisam ser conhecidos e reconhecidos”, afirma a psicoterapeuta. Para ela, o fundamental é acreditarmos que, dadas as circunstâncias, somos capazes de fazer sempre o melhor que está a nosso alcance. “Podemos resgatar a capacidade de brincar, de superar o que nos fere, de olhar para nossas potencialidades”, diz ela.

Igualmente vital para nos sentirmos plenos é aceitarmos as diferentes fases da vida como elas são e delas extrairmos os aprendizados possíveis. “Feliz é aquele que se lança para a vida e não tem medo de viver as coisas em seus respectivos momentos”, afirma Meucci. Também fica satisfeito aquele que, em vez de se esfalfar para conquistar esse estado de espírito, prefere esculpi-lo, como um artista à mercê da criatividade. “A felicidade não é algo que alcançamos, e sim conduzimos; não depende do contexto, mas de nossa determinação para superarmos as dificuldades e desfrutarmos a vida”, diz Stamateas, que nos remete às sábias palavras do filósofo francês Jean-Paul Sartre: “O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós”.

“Os valores transmitidos pela família muitas vezes formam crenças negativas que precisam de nossa valentia para serem reconhecidas e superadas”,
Bernardo Stamateas, terapeuta familiar e sexólogo