quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Sem medo de ser feliz - (Revista Bons Fluidos; Texto: Raphaela de Campos Mello e Ilustração:Jana Magalhães)


A cada passo dado você sente que a felicidade se afasta alguns metros? Não, você não está perseguindo uma utopia. Talvez esteja, inconscientemente, queimando chances preciosas de se realizar. Por isso, queremos convidá-la a repensar as próprias atitudes para, quanto antes, ser capaz de interromper o ciclo destrutivo da autossabotagem.


Imagine-se no gramado de um campo de futebol em plena final de Copa do Mundo. A torcida urra, eufórica. Cabe a você bater o pênalti que decidirá o título. Você treinou e acertou esse chute centenas de vezes, no entanto, na hora decisiva, a bola passa a metros da trave. Frustrante, para não dizer desolador. Pois é exatamente isso o que muitas vezes fazemos com a felicidade. Por medo dos riscos e das responsabilidades inerentes à vida, em geral temores inconscientes, arremessamos nossa realização para escanteio quando, na verdade, queríamos marcar um golaço. Esse ato chama-se autossabotagem. Perigosa armadilha que tentaremos desativar nas próximas linhas.

Você deve se lembrar da espinha que apareceu bem na ponta do seu nariz no dia da formatura do colegial, da gripe que acometeu sua colega na véspera daquela importante reunião, da tendência da vizinha para se apaixonar por homens que não a valorizam. Atitudes forjadas por uma parte de nós que não nos vê como merecedoras do sucesso, ou, então, que subestima nossa capacidade de lidar com as atribuições coladas aos louros da vitória.

Pela lógica, essa conta não fecha. Se desejamos do fundo da alma obter êxito no maior número possível de setores da vida, por que atuamos contra nossos próprios intentos a ponto de boicotá-los? Ora, porque, a princípio, não fazemos ideia de quanto estamos nos prejudicando. “Muitos, ou a maior parte, desses destrutivos comportamentos estão quase que totalmente fora do domínio da consciência”, afirma o psicólogo americano Stanley Rosner, coautor do livro O Ciclo da Auto-Sabotagem – Por Que Repetimos Atitudes que Destroem Nossos Relacionamentos e Nos Fazem Sofrer (ed. BestSeller). “A autonomia, a independência e o sucesso são apavorantes para algumas pessoas porque indicam que elas não poderão mais argumentar que suas necessidades precisam ser protegidas”, diz o autor.

O filósofo e psicanalista paulista Arthur Meucci, coautor de A Vida Que Vale a Pena Ser Vivida (ed. Vozes), enxerga nesse processo uma fraude psíquica da pior espécie: os chamados ganhos secundários. “Há jovens que saem de casa para tentar a vida, enquanto outros permanecem na suposta zona de conforto, porque continuam sendo alvo da atenção dos pais e ainda se eximem de enfrentar possíveis dificuldades da fase adulta”, afirma Arthur. O problema é que, se aterramos dessa maneira amedrontada ad infinitum, não decolamos, não nos desenvolvemos plenamente. “Todo mundo busca a felicidade, a questão é ter coragem de viver, o que significa correr riscos e assumir responsabilidades, sabendo que não podemos controlar a vida, a grande angústia do ser humano”, diz ele.


Reformulação do olhar
Em alguns casos, o gatilho da autopunição está na lente, há tempos desfocada, através da qual enxergamos o mundo e a nós mesmas. O trabalho, então, é ajustá-la para que a pessoa possa identificar suas potencialidades e se apropriar delas. “Tendemos a conhecer mais o que não gostamos ou o que os outros não gostam em nós e a conhecer muito pouco aquilo que em nós existe e é bacana, bonito, valoroso”, diz a psicoterapeuta paulista Lilian Frazão, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), especialista em gestalt-terapia, corrente que compreende o indivíduo em sua totalidade e inserido no ambiente em que vive.

E pensar que essa tal felicidade cantada em verso e prosa pode estar muito perto de nós e ainda assim permanecer invisível simplesmente porque nossos olhos ainda não estão programados para ver além dos automatismos e de nossas crenças um tanto nebulosas. “Não raro buscamos a felicidade no lado inverso de onde poderíamos encontrá-la. Queremos ser bonitos, elegantes e inteligentes como os outros e assim deixamos de ser o que naturalmente somos”, afirma Lilian. Com isso, ela emenda, nos desalojamos do lugar mais confortável que poderíamos habitar: nossa própria pele. “É muito mais fácil ser o que sou e ser feliz assim do que tentar ser o que não sou”, diz.

Só vamos entender o que nos leva a assumir posturas depreciativas quando pararmos para avaliar nossa trajetória e, sobretudo, nossas relações familiares, com a ajuda de um analista ou terapeuta. Que tipo de herança emocional carrego que, de tão pesada, me impede de gozar a vida? Eis um bom começo para essa investigação, segundo o terapeuta familiar e sexólogo argentino Bernardo Stamateas, autor de Autossabotagem: Reconheça e Mude as Atitudes Que Você Toma contra Si Mesmo (ed. Academia de Inteligência).

“Todo mundo busca a felicidade, a questão é ter coragem de viver, o que significa correr riscos e assumir responsabilidades, sabendo que não podemos controlar a vida, a grande angústia do ser humano”,
Arthur Meucci, filósofo e psicanalista.

“Os valores transmitidos pela família muitas vezes formam crenças negativas que precisam de nossa valentia para serem reconhecidas e superadas”, ele afirma, e acrescenta: “Filhos que foram condicionados pelos pais a se sentir merecedores de satisfação somente depois de estudar ou cumprir determinadas tarefas se tornam adultos que se acostumam a postergar a felicidade”, exemplifica Stamateas.

Não se trata apenas de adiar o aguardado fim de semana na praia ou a ida ao restaurante predileto. A privação pode se estender a conquistas mais relevantes. “Quem não tem permissão para ser feliz, quando obtém algo positivo, imediatamente faz alguma coisa para perdê-lo. Se arruma um namorado, o trata mal para que ele vá embora, se consegue um bom trabalho, não cumpre o horário para justificar uma demissão”, constata o terapeuta.

De acordo com Meucci, outro comportamento preocupante e que aparece com frequência em seus atendimentos é a identificação com as insatisfações paternas ou maternas. “Filhas de mulheres divorciadas costumam sentir a frustração da mãe por não ter conseguido levar o casamento adiante e, às vezes, para não humilhá-la, sabotam inconscientemente o próprio casamento ou noivado, afastando-se do parceiro de várias maneiras”, diz o psicanalista. Segundo ele, tão difícil quanto reconhecer essa solidariedade deturpada é olhar para os próprios defeitos e limitações. Se a mulher atrai um certo perfil de parceiro sucessivamente e sempre se queixa disso pelos mesmos motivos, o que é muito comum, provavelmente o problema não está nos eleitos. “No fundo, ela quer que os outros mudem, mas não ela própria. E, para a transformação, é preciso aceitar que você também tem defeitos. Isso é muito difícil, especialmente para pessoas narcisistas, que se preocupam em demasia consigo mesmas e sentem dificuldade de se colocar no lugar do outro”, afirma o psicanalista.

Desativando a bomba
O tema desta reportagem é um tanto assustador, mas não insolúvel. Pode respirar. Na visão dos estudiosos da psique, consciência e mudança estão intrinsecamente ligadas. Eles avisam que revolver lembranças e situações desagradáveis é dolorido. Também são realistas ao assegurar que leva tempo até conseguirmos digerir nossas experiências, fazer novas associações e, por fim, implementar mudanças significativas em nossa vida. Mas, se tivermos paciência e vontade de nos aprimorarmos, a jornada vale muito a pena. “A parte mais delicada desse processo é converter o reconhecimento em uma mudança de comportamento, porque esse não é um exercício intelectual. Se o reconhecimento não for internalizado, sentido e elaborado, nada vai ser alterado”, diz Stanley Rosner.

Bernardo Stamateas também entende o mergulho interior como uma etapa primordial sem a qual jamais poderemos retornar à superfície mais leves e reformuladas. “Precisamos nos desvencilhar de todos os mandatos de culpa e nos dar permissão para sermos felizes”, afirma ele. Essa virada vem após identificarmos conscientemente atitudes que até então guarneciam a torcida adversária alojada em nosso próprio ser. Passamos, assim, a policiar ações e palavras que certamente iriam nos afastar de nossos propósitos. Não mais alimentado, o mecanismo do boicote, enfim, se desmancha. “Quando a pessoa desvenda as causas da autossabotagem, consegue se entregar para a vida”, diz Meucci.

Mas, prepare-se para experimentar uma reação em cadeia. Afinal, não vivemos saltando de um compartimento estanque para outro. Trabalho, casa, lazer, amores. Tudo isso está interconectado. Logo, se mudamos nosso jeito de nos posicionar em determinada área, as demais também serão afetadas. Suponhamos que uma pessoa tenha descoberto que está num relacionamento problemático e não queira mais se submeter a essa dinâmica. Assim que se tornar mais altiva na esfera amorosa, também se mostrará mais assertiva no campo profissional. “As artimanhas psíquicas que usamos em casa e no trabalho são as mesmas: o jeito de negociar, de lidar com funcionários e filhos, de dar ordens”, diz Meucci. Por isso, ele entrega, costuma ser angustiante demolir nossa concepção de sujeito para que possibilidades mais saudáveis sejam erguidas dos escombros.

O que vale é saber que só assim conseguiremos nos apossar de nossos pontos fortes e, confiantes, “exercer o que temos de melhor”, nas palavras de Lilian. No entanto, ela salienta, não podemos menosprezar ou, pior ainda, negar a dor, parte indissociável da existência. “Uma situação pode ser ruim e boa ao mesmo tempo. Nesse sentido, o sofrimento é uma passagem necessária que evidencia aspectos que precisam ser conhecidos e reconhecidos”, afirma a psicoterapeuta. Para ela, o fundamental é acreditarmos que, dadas as circunstâncias, somos capazes de fazer sempre o melhor que está a nosso alcance. “Podemos resgatar a capacidade de brincar, de superar o que nos fere, de olhar para nossas potencialidades”, diz ela.

Igualmente vital para nos sentirmos plenos é aceitarmos as diferentes fases da vida como elas são e delas extrairmos os aprendizados possíveis. “Feliz é aquele que se lança para a vida e não tem medo de viver as coisas em seus respectivos momentos”, afirma Meucci. Também fica satisfeito aquele que, em vez de se esfalfar para conquistar esse estado de espírito, prefere esculpi-lo, como um artista à mercê da criatividade. “A felicidade não é algo que alcançamos, e sim conduzimos; não depende do contexto, mas de nossa determinação para superarmos as dificuldades e desfrutarmos a vida”, diz Stamateas, que nos remete às sábias palavras do filósofo francês Jean-Paul Sartre: “O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós”.

“Os valores transmitidos pela família muitas vezes formam crenças negativas que precisam de nossa valentia para serem reconhecidas e superadas”,
Bernardo Stamateas, terapeuta familiar e sexólogo

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