quarta-feira, 29 de outubro de 2008

O verdadeiro e o relativo - (Swami Dayananda Saraswati)



Há palavras nas diferentes línguas que descrevem a realidade. Palavras que se referem ao real e ao falso. Esses são adjetivos. Por exemplo, você pode dizer “isto é falso”.

Qualquer coisa que vá contra um fato provado pode considerar-se falsa. Num tempo, quando o sol “saía” pelo horizonte, e a terra era plana, os pensadores eram os teólogos. Quando apareceu em cena o astrónomo Giordano Bruno e começou a questionar essas afirmações, e a dizer que a terra era esférica, ele foi excomungado e queimado vivo.

Quando alguém se coloca contra um fato provado que comprovadamente é falso, pode estar colocando-se contra o mundo, o que não significa que todo o mundo esteja certo.

Temos três palavras que revelam a nossa compreensão da realidade: 1) verdadeiro, 2) falso, 3) inexistente. Um círculo quadrado não existe, pertence à terceira categoria. Se você olhar para essas coisas não existentes, verá que elas são combinacoes de duas coisas que de fato existem: o coelho existe, os chifres existem, mas um coelho chifrudo não existe.

Podemos concluir então, que estas palavras sejam importantes. Tudo o que fazemos na vida está baseado na nossa compreensão do que é verdadeiro e do que é falso. Há aspectos na realidade que são mais importantes que outros, desde o nosso ponto de vista. Portanto, toda a nossa vida, tudo o que fazemos, está em função daquilo que é importante para nós.


A pulseira e o ouro


Existe, no entanto, uma confusão entre aquilo que é importante e aquilo que não é. Por exemplo, eis um colar feito de ouro. Demos a esse colar uma mente humana. Agora, o colar é consciente de si mesmo. Ele sabe que é um colar. Se você também der uma mente humana a uma pulseira, ela se verá como alguém diferente do colar. A pulseira está com um problema, pois percebe que está definhando. A pulseira está angustiada, pois está ficando cada vez mais fina. A cada vez que a dona dela lava as mãos, a pulseira vai se arranhando e desgastando.

A pulseira começa a pensar: “eu não quero ser mais uma pulseira. Gostaria de ser um colar”. Preste atenção. Estou falando de você. Eu pergunto para a pulseira: “você está feliz?” Ela responde: “nem queira saber. Eu gostaria de ser aquele colar. Ele sempre tem luz boa, está sempre em evidência. Eu estou coberta o tempo todo pela roupa. Não apareço. Meu trabalho é aparecer bonita, mas eu não apareço. Estou sempre coberta. Que vida é essa? Eu queria mesmo era ser um colar”.

Aí você pergunta para o colar, e descobre que ele tem o mesmo problema: ele quer ser um anel. Quer ser algo diferente do que é. Esse é um problema da psicologia humana. A psicologia tem esse problema, mas não tem uma resposta para ele.

O problema é o ponto de partida: a visão da realidade está equivocada. O detalhe é que não existen pulseiras, colares ou anéis. Só existe ouro, sob formas diferentes.

Quando você vende essas jóias, o comprador paga pelo ouro, não pelo trabalho, nem pela forma. Só pelo peso do ouro. O ouro é a verdade da jóia. Você não pode dizer que ele seja inexistente. Tampouco pode dizer que seja falso. É satyam, é verdadeiro.

Qual é a realidade? A pulseira não tem peso, separado do peso do ouro com que ela está feita. Qual é a realidade, então? A realidade é que a pulseira é ouro. A pulseira não está no ouro, ou sobre o ouro. A realidade da pulseira é ouro.



O pote e a argila


É como o pote. O peso do pote é o peso da argila. A textura do pote é a textura da argila. O pote não está na argila. O pote é a argila. Se o pote é argila, a argila deve ser pote. É aí que está o problema. É aí que o Ved€nta vem para dar um sentido para a sua vida.

A argila é argila. Na sua compreensão da argila, a forma não é uma parte dela. É por isso que você reconhece a argila, independentemente da forma que ela assuma. Você reconhece a argila na forma de pó, na forma de formigueiro, na forma dos diversos potes, pois ela transcende a forma.

Portanto, pode ser um pote, um formigueiro, um brinquedo ou a forma que for. Por causa de que a sua compreensão da argila transcende a forma, e porque você compreeendeu que a argila transcende todas as formas, você é capaz de reconhecer a argila, independentemente da forma que esta assuma.

Se a pulseira precisa se livrar do seu problema de ser uma pulseira, é só lembrar que ela é ouro. Se a pulseira soubesse que é ouro, seus problemas acabariam. A essência da pulseira é o ouro, que transcende todas as formas. Quantos ouros existem? Só um. Esse único ouro transcende todas as formas.

O fato da pulseira resolver seu conflito com a forma, não resolve o problema do anel nem do colar. Todas e cada uma das jóias precisam compreender isso.



O verdadeiro e o relativo


O pote não é não existente. Não é tucham. Entretanto, ele tampouco é satyam, tampouco é verdadeiro. A verdade do pote é a argila. Todos os problemas são reais. Pedem soluções práticas.

A realidade do pote é que ele não é satyam. Satyam é a argila, e somente ela. O pote não é falso nem não existente. O que é o pote, então? O que é o seu corpo? Maya. Asat significa não existente. Nossa mente precisa se segurar nas categorias que ela cria para se sentir segura, pois não consegue aceitar os fatos.

Explique a doçura, por exemplo. Ela é inexplicável. É ausência de rotulação em termos de verdadeiro/falso/não existente.

O fato é que o pote segura a água, mesmo sem ser satyam. Cada palavra tem sua importância. Não há nada aqui livrado ao azar. Nossa compreensão da realidade precisa de uma palavra. Que nossa compreensão precisa de um ajuste torna-se claro quando dizemos pulseira, colar, anel. Quando você diz pote de argila, ou pulseira de ouro, o “de ouro” torna-se o adjetivo da pulseira. Um adjetivo que o diferencia das demais pulseiras. Assim surge a dualidade. Existem diferentes pulseiras. Eu vivo a minha vida a partir da minha própria compreensão da realidade.

A verdade é que o ouro é satyam. O ouro é a realidade. A pulseira depende da existência do ouro. A palavra, assim, revela a nossa compreensão da realidade. A pulseira não é satyam. Como vou acomodar esta visão? De que jeito usarei as palavras? Se eu estiver confundido, para mim, satyam pode tornar-se um adjetivo.

Para conseguir acomodar esta visão em palavras, preciso de palavras que a revelem corretamente. Qual é o status da pulseira? Se não é satyam, e não é tucham, é o que? Se não tem substância real, é o que? A palavra pote tem significado. Esse significado está associado com uma substância? Chamemos o status da pulseira de mithyam, um objeto cuja existência depende da presença de outro.

Cada palavra revela sua compreensão da realidade. É preciso usar as palavras com cuidado. O que eu ensino não se presta a manipulações nem ao uso leviano das palavras.


Extrato de uma palestra proferida por Pujya Swamiji no Ashram de Rishikesh, Índia, em março de 2007, anotada e traduzida por Pedro Kupfer. Evetuais equivocações devem ser creditadas ao tradutor.

Um comentário:

Anônimo disse...

Fantástico...

Lisandro