Ensina Ádi Shankaracharya, o sábio advaita, que somos, todos os seres, uma única e mesma Essência Real, e que devemos vivenciar esse postulado, pois somente a realização transformará a simples afirmação intelectual e imortal e libertadora Verdade. Quando tal ocorrer, teremos aberto a nós mesmos a porta da Unidade, que é o Absoluto Ser (Sat), Consciência Pura (Chit) e Absoluta Beatitude (Ananda). Teremos, assim, atingido o objetivo último da existência, que é realizar-nos, a nós mesmos, fundindo-nos no Todo, sumindo no Uno.
Acho-me sentado sob a árvore, tendo em torno de mim um universo inebriante de sensações. É a voz da criançada a brincar lá fora. É um motor que está rosnando, numa moto à distância. O farfalhar da acácia tangida de vento quase consegue abafar a música de mau gosto que sai de um rádio, numa casa distante. Há alegria no pipilar de alguns poucos passarinhos. Meu mundo sonoro é, portanto, variado, confuso, espontâneo e pouco harmônico. E ele atrai meus ouvidos.
Vejo rosas vermelhas e jasmins exibindo brancura. O cheiro do ar é bom. O vento faz tudo mover. O Sol, um pouco embuçado de névoa incerta, ainda consegue semear incertas sombras no chão. O vento continua buliçoso e brinca com os ramos das árvores, fazendo-os dançar. As sombras dos ramos também dançam, mas em silêncio. A dança é geral. É dança verde, imprevisível, fresca e bonita. Todo jardim é um balé sob a regência do vento.
A gatinha branca, sem saber que se arrisca a ser mencionada, com sua placidez limpa, habitual, entra em cena a lamber-se solene, emprestando uma boa dose de graça ao quadro de que faço parte.
O chão é canteiro de vida. Grama aqui. Terra escura estrumada, ali adiante. As bonitas me atraem a atenção por serem pequenas manchas escarlates bem nítidas. Há ainda florezinhas – umas brancas, outras amarelas. São miúdas, ínfimas, perdidas e anônimas em sua banalidade. Só um poeta ou um místico lhes daria atenção. Só a custo vou descobri-las. Há também matinho vagabundo e ignorado, sem brilho, sem história...
Naquele pequeno pedaço da Realidade, que é meu jardim, tento fazer um exercício vedantino: sentir-me unido, idêntico a todos os seres e impressões que o povoam e movimentam. Quero sentir-me entremeando e sustentando a existência de tudo. Quero sentir o Absoluto que está em mim e que é o mesmo em tudo. Quero tornar-me o jardim. Quero fundir-me com ele e confundir-me com todos os esses seres, com todas as variadas formas, que, sem pedir licença, me invadem pelas janelas dos sentidos.
Começo com o tornar-me as montanhas azuladas e me sinto engrandecido e nobre. Torno-me rosa, e sem dificuldade o faço. Rosa perfumada, exuberante, dadivosa, colorida... Sou cedro, agapanto, cravina, jasmim... E por que não a florzinha miúda, pobre e perdida no escuro do canteiro?... Chego a gozar a tranqüilidade horizontal da grama. Sou acácia dançarina... Sinto-me colibri, doidinho, de flor em flor. Sou andorinha sem compromissos, rasgando espaços... Sinto-me em cada criança gritando e correndo na estrada, brincando de pegar... Agrada-me sentir-me vento buliçoso, vento-menino, mexendo com as plantas... Olho o céu e gozo ser céu... É fácil identificar-me com a gatinha de olhos amarelos a explorar os canteiros. Não faz mal tornar-me areia, barro, humo, cimento, parede, cal, pedra... Gozo o sentimento de perenidade mineral do chão.
Vejo agora alguma coisa que a cadela deixou na grama. Repugnante e fétido, atrai somente a atenção da moscaria igualmente repugnante. É um acidente que perturba a beleza de toda aquela manhã no jardim ensolarado.
Não consigo ser mosca...
Não tenho jeito de tornar-me aquilo...
Há um desafio a meu espírito vedantino.
Tenho de ser equânime e não me negar a identificar-me com algo.
Se o Real Ser assume todos os aspectos, não somente os belos, mas também os feios; se o Absoluto está em tudo, seja qual for a sua aparência; se eu quero sentir o Real e a Ele unir-me; se meu objetivo é transcender o Reino das aparências e imergir no Absoluto, como rejeitar aquilo, pondo-o fora do que busco Ser?!...
Tornar-me aquilo, mesmo sendo manifestação do Uno Sem Segundo, francamente me enoja...
É nessas cogitações que percebo que há muito minha atenção não desgrudou daquilo. Agora são as moscas e eu que pousamos sobre aquilo nosso interesse... e, assim, já não tenho dificuldade em estar no inseto que todos acham repelente...
Continuo meditando. Não posso excluir do Todo aquela sua parte repelente. Repelente para quem?!
Para mim.
E quem é esse mim que tem a audácia de excluir algo que integra o Todo? Aquilo é uma aparência do Todo. E eu, que julgo, que penso, que valorizo, não serei também uma outra aparência?
E que tal um esforço para ultrapassar a cortina das aparências, o reino do ilusório?...
Vale tentar.
Prossigo a meditação. Tento descobrir a infinitude do Todo, o indivisível do Absoluto, a Eternidade do Uno... sob a muralha daquele aparente nojento. A primeira grande alegria foi deixar de ver aquilo e perceber fascinado o maravilhoso quimismo a processar-se sob a regência do Sol que incide, do ar que circunda, da terra que recebe e que dá... Vejo daquilo desprender-se não mais a fedentina, mas algo precioso, que penetra a areia e vai ser bebido pelas muitas boquinhas nas múltiplas radículas da grama e das grandes árvores, e aquilo vira seiva, seiva subindo, se transformando em rosa, produzindo fragrância, rosa enfeitando altares... É o milagre da Vida Perpétua...
Continuei esquecido de tudo mais e vi usinas febris e fecundas no coração dos átomos... No reino dos átomos não há repugnantes. Assisti extasiado a um drama de vibrante dinamismo no infinitamente pequeno, naquilo e em mim...
E cheguei àquele acontecimento divino em que a matéria some... Mergulhei corajoso no universo das energias puras...
Mas, distante, deslumbrou-me a eclosão do pensamento puro, que nasceu da morte da energia...
Depois, o milagre maior: o pensamento cessou... Parei de pensar...
Passei a Ser...
E...
(Extraído do livro Yoga, Caminho para Deus)
quarta-feira, 29 de outubro de 2008
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