Há 50 anos ele nos estuda. Estuda, mais precisamente, nossas relações, nossa sexualidade, nossa dificuldade de amar e o que chama de mal da monogamia. Por suas idéias não convencionais já foi apelidado de terrorista social. José Angelo Gaiarsa não liga. Tudo o que quer aos 85 é continuar a nos investigar.
Você já gozou hoje? E, mais importante ainda, foi bom?
Não há nada de estranho, engraçado ou sujo com essas perguntas. Para o psicanalista paulista José Angelo Gaiarsa são indagações fundamentais. Seguidor das idéias do médico austríaco Wilhelm Reich (1897-1957), Gaiarsa acredita que viveríamos em um mundo mais justo e livre se fizéssemos mais amor. Ou, colocado de outra forma, se nossas relações sexuais fossem mais intensamente exploradas e menos reprimidas.
E ele diz isso bem antes dos Beatles entoarem “All We Need Is Love”. Ele diz isso, aliás, há exatos 50 anos, quando, aos 26 anos, concluiu a faculdade de medicina da USP e se deixou seduzir por Wilhelm Reich. Foi então que abandonou a formação altamente católica e começou a questionar e a investigar as relações humanas.
Agente das mudanças que gostaria de promover no mundo, teve cinco mulheres e, com duas delas, conseguiu aplicar sua teoria de amor livre. Funcionou. Mais para elas do que para ele.
Durante dez anos, de 1983 a 1993, suas idéias foram ao ar, diariamente, pela TV Bandeirantes. Eram seis minutos de papo com Gaiarsa, que respondia, ao vivo, a dúvidas de espectadores. Por sua franqueza, foi amado e odiado. Espécie de Alfred Kinsey (o biólogo e sociólogo que pesquisou tendências e práticas sexuais dos americanos na década de 40) brasileiro, autoditada quando o assunto é tudo o que tange a relações humanas e sexo, e defensor de formas mais livres de amor, já foi chamado de terrorista social.
Como tudo o que repele também intriga em igual proporção, é autor consagrado, já publicou 30 livros e passou mais de 60 mil horas em seu consultório ouvindo discursos inconformados sobre o que chama de lado podre da família. Com base nessas informações, foi reescrevendo seu código de ética e moral.
Invadimos o pequeno apartamento de Gaiarsa no fim da tarde de uma quarta-feira de setembro. Íamos atrás de seus conhecimentos no que toca o amor, a relação entre homens e mulheres, o gozo, a monogamia e a felicidade – questões que insistem em nos cutucar em doses diárias. E, sobre tudo isso, ele começou a falar no mesmo instante em que nos deixou entrar.
Ainda de pé, no meio da sala que dá vista para a Vila Madalena, bairro descolado de São Paulo, ficamos, por quase 15 minutos, sem conseguir fazer com que Gaiarsa interrompesse o raciocínio. Quando finalmente nos mudamos para o sofá, ali passamos mais três horas.
Aos 85, o psicanalista, quatro filhos, sete netos, está sozinho. Mas garante não se arrepender da vida que levou. Tudo porque, assim como Nietzsche, acreditou que a maior inimiga da verdade não é a mentira, mas a convicção. Com isso em mente, continua a nos estudar.
Depois de todos esses anos, o senhor conseguiu entender um pouco mais a mulher, e o que nos dá prazer?
Gaiarsa. Não [risos]. Olha, achar que homem e mulher têm sexos parecidos é a maior imbecilidade do planeta. “Ah, eu tenho orgasmo toda vez”, elas dizem na cara do garotão. A idéia geral de que devo ter orgasmos fica subtendida como o dele, e, como o dele é carnavalesco, ela acaba imitando o inconsciente involuntário. Pode até sentir alguma coisa boa, não é que não, mas ela está seguindo uma indicação de orgasmo que não é dela. É: “Não quero ser a inferior, posso me divertir tanto quanto ele”.
Mas para a mulher sexo ainda é mais tabu do que para o homem.
Se uma mulher segue seu destino, se desde pequena ela brinca, se aprende a se masturbar com arte, não. Não é assim: “Vou depressa para acabar”. É: “Deixe-me sentir tudo o que posso sentir”. No relatório Hite [estudo sobre a sexualidade feminina, publicado em 1976, e que causou impacto na época porque continha revelações como a que dizia que o clitóris é o ponto-chave do prazer feminino] tem relatos de mulheres que aprendem a se masturbar e tem estados orgásticos durante o tempo que quiserem, o que jamais aconteceria com o homem, a não ser que ele faça um curso de ioga tântrica na Índia de 5000 anos atrás [risos]. O homem vai e acaba. Fim. Chega uma explosão e depois brocha, fica a zero. Eles falam muito, mas a maioria dos homens dá uma e pára. E dorme [risos]. É clássico. E ela se irrita. Ela é muito mais difícil de acordar, mas se é bem acordada tem possibilidade de estados orgásmicos intermináveis.
“SEGUNDO A IOGA MILENAR, SEXO ERA UMA ARTE ELABORADÍSSIMA, EM QUE O HOMEM TENTAVA APRENDER COM A MULHER COMO É QUE ELA TINHA TANTO PRAZER”
Tecnicamente podemos sentir mais coisas do que eles?
Segundo a ioga milenar, sexo era uma arte elaboradíssima, em que o homem tentava aprender com a mulher como é que ela tinha tanto prazer. O homem tentava imitá-la. O homem pode ir treinando segurar, segurar, segurar e demorar muito tempo. Tudo isso é mais ou menos bem estabelecido, meio falado, mas muito pouco feito. Em primeiro lugar você precisa ter com quem. E admitir o que ninguém admite: “Olha, eu não sei como é, não sei nada, estou cheio de vícios e você também. Vamos tentar reaprender?”. Precisa ter alguém que tenha coragem para dizer: “Não sei nada, vamos começar do começo”.
O casamento é uma prisão?
Nem discuto isso porque para mim é a coisa mais evidente do mundo. Aliás, você jura diante de Deus, das testemunhas, que vai amar até o fim da vida. Não tem cabimento uma coisa dessas.
E isso é impossível?
Não acho impossível, mas acho impossível jurar isso. Como é que posso prometer uma coisa dessas? Tinha que ser: “Estou amando você, vamos fazer força para durar”. Agora, “Juro que vai durar a vida toda?”. É a repressão matrimonial. Ou seja, falamos da repressão sexual e agora da matrimonial, que é seguida pela repressão maternal.
“SOMOS TODOS POLICIAIS DO SISTEMA. TODOS VIGIAM TODOS PARA QUE NINGUÉM FAÇA O QUE TODOS GOSTARIAM DE FAZER. SOMOS CARCEREIROS E PRISIONEIROS”
Por trás disso existe um culpado?
Somos todos culpados. Porque você que se diz liberal está olhando para a sua amiga e se ela for meio galinha você é a primeira que dirá: “Olha aquela lá, que coisa”. Somos todos policiais do sistema. Todos vigiam todos para que ninguém faça o que todos gostariam de fazer. Somos todos carcereiros e prisioneiros.
Qual a solução?
Acho que sinceridade é a única solução que existe. Desde muito cedo: “Olha, gosto muito de você, mas enquanto nossa ligação nos proíbe de qualquer movimento amoroso você é meu inimigo. Então, se você não quiser ser meu inimigo, se eu tiver uma outra chance amorosa de boa qualidade, eu concilio”. Que o amor não seja uma prisão recíproca, porque ele se transforma imediatamente em exigências implícitas.
O senhor sempre foi inquieto com essas questões? Mesmo na infância?
Olha, muito moleque eu nunca fui. Nasci em Santo André, São Paulo, e era muito tagarela, lia muito, me interessava por coisas novas, em interagir com a família, que era enorme. Minha mãe tinha 12 irmãos, seis homens e seis mulheres, todos operários da fábrica do meu pai.
O senhor teve uma educação católica, tanto em casa como na escola?
Tive, minha mãe era muito católica.
E como fez para se libertar desses detritos morais e estudar as relações humanas e o sexo sem preconceitos?
Aconteceu muito cedo. A pior coisa que o cristianismo fez para mim foi condenar a masturbação. Uma histeria completa, porque eu acabava fazendo e me arrependia. Fazia e depois dizia que nunca mais ia fazer.
“A PIOR COISA QUE O CRISTIANISMO FEZ POR MIM FOI CONDENAR A MASTURBAÇÃO”
Com quantos anos o senhor se casou pela primeira vez?
Com 27. Meu primeiro casamento durou 25 anos e me deu três filhos. O casamento não foi bom. Aliás, todos os meus casamentos duraram de metade a dois terços a mais do que deveriam ter durado, até o mais curto deles, que durou três anos. Separar é muito difícil. Mas aconteceu o fato de que eu casei e seis meses depois não tinha mais nada de cristianismo na minha cabeça. Meu interesse então se limitava a Jesus Cristo.
E a ruptura com a religião se deu por quê?
Eu já estava começando o consultório, como psicoterapeuta, conhecendo a tristeza do mundo. Até então, a família para mim era linda. Mas no consultório percebi que não era nada disso. Comecei a entrar na vida das pessoas e conhecer a realidade delas, as dificuldades, os sofrimentos, as angústias, o outro lado da família. Na mesma época meu casamento começou a encrespar.
Por quê?
Por tudo.Tinha brigas homéricas com a minha mulher, mas só na minha cabeça. Nunca brigamos de verdade. A nossa briga era inglesa, só de caras. E eu passava o tempo todo da minha folga pensando no meu casamento, no porquê de não estar dando certo. Depois de anos percebi que não estava discutindo o meu casamento, mas o casamento. Eu saía de casa de bico por causa dela, chegava ao consultório e a primeira coisa que eu ouvia do paciente era que ele não agüentava mais a mulher dele. Então comecei a perceber que o casamento é isso, e não o meu que é uma tragédia. Infelizmente, ele era normal.
Sobre o que o senhor falava em seu programa [Gaiarsa tinha um programa diário na televisão, de seis minutos, em rede nacional]?
Era muito variado. Dava aulas, explicava o Reich, respiração, mostrava obras de arte interpretadas. Freqüentemente eles me empurravam para responder telefonemas e era por isso que as pessoas mais se interessavam. Acabei me cansando porque, de cada 100 ligações, 90 eram de mulheres. Trinta me perguntavam o que elas faziam com o casamento. Sessenta queriam saber o que fazer com o filho. Todas absolutamente iguais.
Era um programa de vanguarda?
Muito. Metade das mulheres da época me amava, e metade me odiava. Lembro que depois da estréia eu cheguei em casa e tocou o telefone. Atendi e ouvi: “Gaiarsa? Você é um filho-da-puta!”. Fiquei em choque. Tocou de novo. Era uma outra voz: “Gaiarsa, você é sensacional!”. E foi assim para o resto da vida: amado e odiado.
Em alguns dos cinco casamentos o senhor conseguiu pôr em prática a liberdade de amar que prega?
Nos dois últimos, mais elas do que eu. Eu ficava triste porque às vezes gostaria de estar com ela, e ela estava com outro. Mas não sentia raiva.
Mesmo assim continuava tendo certeza dessa liberdade?
Sim, acho que sim. Prefiro isso ao sistema tradicional. Experimentei os dois. No primeiro casamento senti na pele todas as restrições da velha família.
O senhor diria que se as pessoas gozassem mais, ou melhor, viveríamos em um mundo menos violento.
Eu gosto muito da noção “paz e amor” mas desde que a humanidade é humanidade sempre teve alguém dizendo que deveríamos nos amar e nunca conseguimos. Jesus Cristo morreu para ensinar isso e ninguém é tão responsável por mais torturas e mortes do que ele.
O que impede que nos amemos?
Primeiro: as diferenças sociais. Isso gera revolta, ressentimento, depressão. A nossa trama social é envenenada. Preciso ter certeza de que você não vai me machucar, somos extremamente defensivos, desconfiados, ansiosos e medrosos. A segunda fonte de separação nas pessoas vem da sua infância. Qual é a palavra que criança mais ouve? “Não”. Quase tudo que é espontâneo e livre não pode. Esses dois fatores tornam o homem desconfiado e incapaz de amar. Está esperando a hora que o outro vai machucá-lo. Esse é o contexto que torna o amor tão difícil.
E qual é a grande solução?
O Oriente explica mais ou menos: se tudo é péssimo, fique alerta, consciente. Não entre de cabeça dizendo que agora está amando porque vai dar com a cara. Não arme, mas também não desarme. Tudo isso é o normal. No final, a gente volta tudo: por que amar é tão difícil?
Leia na Tpm # 48: Gaiarsa fala sobre monogamia, o médico austríaco Wilhelm Reich, explica o que é repressão maternal e reflete sobre o tema central desta edição: consumo
Fonte: http://revistatpm.uol.com.br/48/vermelhas/05.htm
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Um comentário:
Olá,
"Não acho impossível, mas acho impossível jurar isso"...
Entendi o que quis dizer e concordo que até podemos jurar mas podemos errar jurando...
Abraços fraternos
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