terça-feira, 22 de junho de 2010

O retiro e a verdade - (Monja Coen)


"Acordávamos antes dos pássaros. Os insetos chilreavam enquanto nos sentávamos em meditação. No silêncio de nossas bocas, ouvíamos o primeiro piar anunciando a manhã. Assim passávamos os dias. De meditação em meditação, silêncio e orações. Plena atenção aos gestos, passos, olhos baixos. Havia dor. A dor do corpo não acostumado a tantas horas na mesma posição e a dor da tristeza, da saudade, da incerteza, da culpa.

Havia a dúvida. Havia o medo de perder a razão. Como se perde a razão? Primeiro, seria de bom senso encontrá-la. O que é a razão? Eu tenho razão? Ele tem razão? Estaria ela com a razão? Que arrazoado é esse?

Em um vitral da sala em que meditávamos, estava escrito: "Não há religião superior à verdade". Era o que nós tentávamos encontrar, a verdade. Verdade sobre nós mesmos. Será que nos enganamos, nos iludimos e logo nos desiludimos? Será que esquecemos a verdade em um baú trancado em um sótão antigo, cujas escadas rangem e nos assustam a cada passo? Mas ela deveria ser clara e luminosa, afastando a ignorância, a ganância, a raiva, o rancor. Por que nos apavora tanto encontrar o que mais procuramos? Por que evitamos e nos escondemos, como se fosse possível a verdade se esconder da verdade? Afinal, não somos todos verdadeiros? De tempos em tempos, eu lia textos medievais, do século 13. Eram textos modernos, atuais, até futuristas. Um deles dizia que o universo é uma jóia arredondada e que não há nada fora dele.

É impossível jogar qualquer coisa fora, pois o fora não existe. Tudo está incluído e se transformando a cada instante.

Esperando o momento de me levantar, com as pernas doendo, contando cada inspiração, eu me esquecia de meu propósito e de minha busca. Parece tão simples e é tão difícil. Poucos conseguem, bem poucos se interessam. Queremos sempre ser entretidos. Gostamos de entretenimento. Pode ser televisão, filme, música, teatro, leitura. Podem ser encontros, festas, conversas. Podem ser amores e desamores, afetos e desafetos, brigas, ciúmes, inveja.

Outro dia, alguém me disse que ciúme e inveja são diferentes. O arrazoado era assim: o ciumento é egoísta, mas ama e protege. O invejoso quer destruir, não quer que exista, quer ser o outro e faz qualquer coisa para apagar o invejado da cena. Perigoso.

Perceba suas emoções, seus pensamentos, sensações. Discernimento é uma palavra que os padres e as monjas gostam muito. Responsabilidade. Escolha.

À noite, antes de ir dormir, antes do último e delicioso toque do sino, que nos permitia levantar, com voz lenta e dramática foi declamado: "Vida e morte são de suprema importância. O tempo rapidamente se esvai e a oportunidade se perde. Cada um de nós deve se esforçar para acordar, para despertar. Não desperdice a sua vida".

Saíamos da sala em silêncio. Alguns ouvindo tudo, outros, nada. Mas a verdade incessante não deixava de ser proclamada. Está sempre em toda a parte e, no entanto, sem abrir o olho da sabedoria, nada entendemos. "Somos a vida do Universo em constante transformação", outra fase medieval. Como é que eles sabiam? Hoje nós sabemos, falamos em Geia, a Terra viva e palpitante, árvores e metais, fogo e ar, seres vivos, plantas.

Quem sou eu? Quem é você? Sou o nada, sou o tudo, sou o todo. Sou a Terra e o Universo em expansão. Sou a borboleta e o orvalho. Sou o silêncio e o turbilhão da mente. Pelas ruelas vazias caminhávamos em fila indiana, sentindo a brisa, as cores, os odores, as texturas dos ventos, as luzes e as sombras. Nós fazíamos parte do todo. O retiro acabou e nos despedimos. Cada um de nós levou aquilo que pôde apanhar ou o que soube largar. (Homenagem à Semana da Iluminação de Buda)"




Fonte: Revista da Hora, 14 de dezembro de 2003

Um comentário:

Anônimo disse...

I like it very much!