sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010
Trechos de "A Conferência dos Pássaros", Capitulo 1. Invocação - (FARID UD-DIN ATTAR)
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No princípio dos séculos, Deus usou as montanhas como pregos para fixar a Terra; e lavou o rosto da Terra com a água do Oceano. Em seguida, colocou a Terra no lombo de um touro, o touro num peixe, e o peixe no ar. Mas, em que descansava o ar? Em nada. Mas nada é nada — e tudo o que é nada. Admira, pois, as obras do Senhor, embora Ele mesmo as considere nada. E, visto que só existe a sua Essência, é certo que não há nada senão Ele. O seu trono está sobre as águas, e o mundo está no ar. Mas deixa as águas e o ar, pois tudo é Deus; o trono e o mundo são apenas um talismã. Deus é tudo, e as coisas só têm valor nominal; o mundo visível e o mundo invisível são apenas Ele mesmo.
Não há ninguém senão Ele. Infelizmente, porém, ninguém pode vê-lo. Os olhos são cegos, ainda que o mundo seja alumiado por um sol brilhante. Se te fosse possível vislumbrá-lo, perderias o juízo, e se o visses completamente perder-te-ias a ti.
Todos os homens que têm consciência da própria ignorância arregaçam a fralda das vestes e dizem, sinceros: “Ó tu, que não te deixas ver, embora nos faças conhecer-te, todo mundo é tu, e ninguém senão tu é manifesto. A alma se esconde no corpo, e tu te escondes na alma. Ó tu, que estás escondido naquilo que se esconde, és mais do que tudo. Todos se vêem em ti e te vêem em tudo. Visto que a tua morada está cercada de guardas e sentinelas, como poderemos aproximar-nos da tua presença? Nem a mente nem a razão têm acesso à tua essência, e ninguém conhece teus atributos. Por seres eterno e perfeito, estás sempre confundindo o sábio. Que mais poderemos dizer, se não podes ser descrito?
Ó meu coração, se desejas chegar ao princípio da compreensão, caminha com cuidado. Para cada átomo há uma porta diferente, e para cada átomo há um caminho diferente que conduz ao Ser misterioso de que estou falando. Para nos conhecermos precisamos viver uma centena de vidas. Mas precisas conhecer a Deus por Ele mesmo e não por ti; é Ele que abre o caminho que conduz a Ele, não a sabedoria humana. O conhecimento d’Ele não está na porta dos retóricos. O conhecimento e a ignorância são neste caso a mesma coisa, pois não explicam nem descrevem. As opiniões dos homens sobre isso surgem apenas na imaginação deles; e é absurdo tentar deduzir alguma coisa do que dizem: bem ou mal, eles o disseram de si mesmos. Deus está além do conhecimento e além da evidência, e nada pode dar idéia da sua Sagrada Majestade.
Ó vós, que dais valor à verdade, não procureis um símile; a existência desse Ser sem igual não admite nenhum. Uma vez que não lhe compreenderam a mais mínima partícula, os profetas e os mensageiros celestes inclinaram a testa até o pó, dizendo: “Não te conhecemos como realmente deves ser”.
Quem sou eu, pois, para vangloriar-me de conhecê-lo?"
"...
Quando a alma se juntou ao corpo fez parte do todo; nunca houve tão maravilhoso talismã. Como a alma tinha uma porção do que é superior e o corpo uma porção do que é inferior, formavam uma mistura de barro pesado e espírito puro. Por essa mistura, tornou-se o homem o mais surpreendente dos mistérios. Não conhecemos nem compreendemos coisa alguma do nosso espírito. Queres dizer alguma coisa sobre isso? Seria melhor que te calasses. Muitos conhecem a superfície deste mundo, mas nada entendem das suas profundidades; e o mundo visível é o talismã que o protege. Mas esse talismã de obstáculos corpóreos acabará se quebrando. Encontrarás o tesouro quando o talismã desaparecer; a alma se manifestará quando o corpo for posto de lado. Mas tua alma é outro talismã; é outra substância deste mistério. Percorre, pois, o caminho que eu te indicar, mas não peças explicações.
Neste vasto oceano, o mundo é um átomo, e o átomo, um mundo. Quem sabe o que vale mais aqui, a cornalina ou o seixo?
Arriscamos nossa vida, nossa razão, nosso espírito, nossa religião, para compreender a perfeição de um átomo. Costura os teus lábios e nada perguntes sobre o empíreo ou o trono de Deus. Ninguém conhece realmente a essência do átomo — pergunta a quem quiseres. Os Céus são como uma cúpula às avessas, sem estabilidade, que se move e não se move ao mesmo tempo. Um está perdido na contemplação desse mistério — é véu sobre véu; outro é como a figura pintada na parede, e outro só consegue morder o dorso da própria mão."
Título do original: “The conference of the birds” Copyright © da tradução inglesa 1954 C. S. Nott
Tradução: Octavio Mendes Cajado, a partir da tradução inglesa de C. S. Nott
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