quinta-feira, 26 de maio de 2011

Quando o inferno é você - (Arthur Jean; citações: Ram Dass)



"Quando você deixa de se identificar totalmente com seu corpo físico e a sua entidade psicológica, a ansiedade começa a se dissolver. Então, você começa a se definir como um ser em estado de fluxo no universo; e tudo que acontece - morte, vida, alegria, tristeza - vira trigo para o moinho da consciência desperta. Não mais uma coisa contra outra, e sim todas as coisas, da maneira como se apresentam."
(RAM DASS)


"Qualquer pessoa pode criar um inferno particular a qualquer momento, mesmo naqueles tão inócuos como a hora de fazer o pedido num restaurante.

Tenho um amigo que vou chamar de Charlie. Ele é vegetariano (não come carne, nem peixe, nem derivados do leite), muito desencanado, pratica yoga e trabalhou bastante suas questões psicológicas em terapia. Um dia fomos almoçar em um restaurante predominantemente vegetariano. Ele sabia exatamente o que queria: tofu mexido. Mas não havia tofu.

- Acabou o tofu? - exclamou Charlie, incrédulo e exasperado.

- Como assim? Isto é um restaurante vegetariano.

O garçom deu de ombros.

- Não tem tofu mexido. O tofu acabou.

-Você não quer pedir outra coisa? Talvez um hambúrguer vegetariano? - sugeri. - Não quero outra coisa! - atalhou Charlie.

- Já volto - disse o garçom; e foi procurar um porto seguro noutra mesa. Quando voltou para tomar o pedido, poucos minutos depois, Charlie permaneceu inflexível.

- E se eu lhe der um dinheiro, para que você vá comprar o tofu em algum lugar, aqui perto? Daria pra sair o mexido? - perguntou.

- Aqui perto? - perguntou o garçom, incrédulo.

- Não, tudo bem, você está ocupado, certo? Que tal se eu for comprar o tofu?

Vocês podiam preparar o mexido? - propôs Charlie. - Acho que não.

Pode conferir? - perguntou Charlie.

O garçom foi embora, balançando a cabeça.

- Tem certeza de que não pode achar alguma outra coisa no cardápio? - perguntei.

- É um absurdo. Não acredito que não tem tofu - disse Charlie, levantando.

- Vou falar com os cozinheiros, para ver se podem prepará-lo se eu comprar. - Foi até a cozinha e começou a falar com um dos cozinheiros, quando viu um garçom levando um prato de tofu mexido para a mesa de outro cliente.

- O que é isso? - gritou Charlie para o nosso garçom.

- Isso aí é tofu! Você me disse que o tofu tinha acabado!

Charlie enfiou o dedo no peito do garçom e este o empurrou. Outro garçom se interpôs para separá-los. Charlie voltou à mesa e disse, furioso:

- Tô fora. Fui pedir desculpas aos funcionários desconcertados.

- Qual o problema dele? - perguntou o garçom.

- Ele... leva o tofu muito a sério - foi tudo o que consegui responder.

Ambos caímos na gargalhada.


Até hoje, não posso dizer a palavra tofu sem sorrir. Hoje Charlie e eu brin­camos a respeito do que chamamos "a ecatombe do tofu”, mas na época foi algo muito doloroso para todos os envolvidos. Ficou pior ainda para Charlie depois, quando caiu a ficha do que tinha feito. Sentiu-se péssimo e voltou ao restaurante para pedir desculpas a todo mundo.

Foi, simplesmente, o caso de uma pessoa boa, mas tão obcecada por seu dese­jo, que perdeu a proporção das coisas. Quando vontades e desejos consomem o pequeno ego, perde-se o momento presente e as outras pessoas se tornam meros obstáculos no caminho da satisfação.

Você pode estar pensando, Eu não sou assim, nunca faria isso! Será que nunca se aborreceu profundamente por não conseguir um emprego ou por rejeição, quando pa­querava alguém? Nunca buzinou, impaciente, ao dirigir atrás de alguém muito lerdo no tráfego? Por que esses momentos seriam diferentes do que aconteceu ao Charlie? O que representaram para você? O fato é que de vez em quando todos nós perdemos de vista aquilo que está ali porque só enxergamos o que achamos que deveria estar. É humano.

Ao desejarmos algo, não estamos conscientes do exato momento presente em que o desejo surge. O ele aparece (seja do que for, de comer tofu ou de ter uma casa própria), geralmente se refere à obtenção de algo no futuro. Mesmo quando esse futuro é daqui a um minuto, o momento presente fica esquecido. A síntese desta "futurização" (que a publicidade nos inculca com muita insistência) é o mecanismo do "Se eu tivesse, seria...". Se tivesse esse carro, essa casa, essa mulher ou esse prato de tofu, então seria feliz. A falácia desta grande mentira materialista se torna evidente para muitas pessoas quando, ao finalmente conseguir tudo o que queriam, percebem que ainda não chegaram à felicidade.

O desejo impede que sejamos felizes aqui e agora, e esse é o único espaço em que podemos ser felizes. Você não pode ser feliz. A felicidade passada é uma lem­brança. Você só pode ser feliz agora.

A maioria de nós, em cada momento, tem tudo o que precisa. Como costu­ma dizer Catherine Ingram, podemos abandonar nossas vasilhas de súplicas. Não temos de viver como fantasmas famintos, a vagar pelo mundo em busca de uma satisfação que já está aqui, em cada vibrante momento.

Isso não quer dizer que o desejo momentâneo deixe de existir ou que seja necessariamente ruim. Mas quando ele ofusca o palco da consciência, pode virar uma espécie de loucura interior. E quando essa doença extravasa para a vida de outras pessoas, o sofrimento é inevitável.

Quando estamos plenamente conscientes no momento presente, vivendo ple­namente, segundo por segundo, fica muito mais fácil aceitarmos o que vem no aqui e agora. O desejo passa a ser um fenômeno como qualquer outro, efêmero e passageiro. Percebemos, então, que ele integra uma consciência maior. "



Fonte: Arthur Jean; Livro – O inferno são os outros

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