sábado, 30 de outubro de 2010

Patañjali, o tântrico - (Pedro Kupfer)

"Recebi recentemente uma interessante mensagem de um praticante fazendo, em nome do Yoga tântrico, uma série da categóricas afirmações sobre o Yoga Sutra. Dentre outras coisas, afirmava o colega que a obra clássica de Patañjali não menciona prana, chakras, nadis nem kundalini. Como discordo completamente dessa opinião, escolhi deliberadamente o título provocativo deste texto, com o objetivo de instigar a curiosidade do amigo leitor em relação ao pouco conhecido vínculo entre o Yoga Clássico de Patañjali e o Yoga tântrico (do qual o Hatha faz parte). Digo isso porque chamar Patañjali de “tântrico” pode ser considerado uma blasfema em certos círculos de Yoga, já que há algumas pessoas que têm medo da kundalini e de todos os assuntos relacionados a esta força.


Assim como o praticante que me motivou a escrever sobre este interessante assunto, muitas pessoas estão acostumadas a ver o Yoga de Patañjali como algo distante das muitas formas de Yoga tântrico que são praticadas hoje em dia, das quais o Hatha é a mais conhecida. O fato é que o Yoga Sutra menciona sim, explicitamente, chakras, nadis e prana. No entanto, não dá aos chakras o nome de chakras, nem os lista na ordem ou segundo a nomenclatura que recebem do tantrismo. Igualmente, fazendo este texto alusão à kundalini, não usa esse nome para designar a força potencial que conduz à iluminação. Considerando que Patañjali viveu muitos séculos antes dos primeiros textos de Yoga tântrico serem escritos, acreditar que isso pudesse acontecer seria uma atitude inocente da nossa parte.

É sabido pelos estudantes de Yoga que diversos termos foram utilizados por diferentes autores para se referir aos mesmos princípios, como é o caso da identidade entre Purusha e Atman, o que acontece, por exemplo, no próprio Yoga Sutra ou na Bhagavad Gita. Também é conhecido o fato de que certos termos mudam de significado de acordo com o contexto e a época em que são usados. Um exemplo é a palavra chitta, que no Yoga Sutra de Patañjali designa o complexo intelecto-ego-mente, e no Tattva Bodha de Shankaracharya, a capacidade de lembrar. Neste caso, a linguagem que Patañjali usa para se referir àquilo que o tantrismo chama de chakras, nadis e kundalini, é bem diferente do vocabulário dos próprios textos tântricos, como era de se esperar.

A modo de introdução poderíamos dizer igualmente que o chamado Yoga tântrico, do qual nasceu o Hatha, possui uma riquíssima linguagem figurada, chamada sandhabhasha, “linguagem crepuscular”, ou ainda abhiprayika vachana, “afirmação intencional”. O obscuro desta linguagem, cheia de metáforas que são de difícil compreensão se não tivermos à mão os códigos corretos para decifrá-las, pode levar o estudante a pensar que está diante de algo totalmente diferente da tradição maior do Yoga, representada pelo Yoga Sutra e os textos anteriores a ele. Assim, kundalini, que simboliza o despertar da consciência, é descrita como uma serpente ígnea que “dorme” no centro de energia da base da coluna vertebral, chamado muladhara chakra. Os chakras são centros de força vital que se encontram ao longo do eixo central do corpo, e estão ligados por uma série de canais energéticos chamados nadis, que coincidem em grande parte com os meridianos da energia mencionados na medicina chinesa.

No entanto, o fato da iluminação ser comparada nos textos tântricos à ascensão de uma serpente de fogo pelo canal central de energia que é a contraparte sutil e vital da coluna vertebral, não significa que os humanos tenhamos uma cobra guardada na ponta inferior da coluna vertebral que pode explodir a qualquer momento. O fato dos chakras serem descritos nos textos como “rodas” de energia não significa que esses dispositivos vão aparecer numa ressonância magnética, como alegam alguns céticos que tentam desqualificar este sofisticado modelo do psiquismo humano. Kundalini, chakras e nadis devem ser corretamente compreendidos: eles são representações simbólicas da potencialidade psíquica humana, que deve ser cuidadosamente desenvolvida.

Alguns praticantes de Tantra Yoga tendem a enxergar a si próprios e ao sistema que professam como algo isolado da tradição maior. No entanto, o vínculo entre a visão tântrica e o não-dualismo do Vedanta, que permeia todas as escrituras do Yoga, aparece já nas primeiras Upanishads. A Katha Upanishad (II:1,10) afirma: “O que está aqui, está lá; o que está lá, está igualmente aqui”. Ora, acontece que este ensinamento é praticamente idêntico ao que aparece num texto medieval tântrico chamado Vishvasara Tantra: “O que está aqui, está em toda parte. O que não está aqui, não está em parte alguma”.

O grande estudioso indiano T. M. P. Mahadevan, afirma em sua obra Outlines of Hinduism (p.180): “No Kularnava Tantra, Shiva diz a Parvati que não há diferença entre a filosofia religosa do Tantra e a verdade do Veda: tasmati vedatmakam shastram viddhi kaulatmakam priye: “Portanto, Ó querida, saiba que a Escritura que é da natureza do Veda é da natureza do Tantra”.” Fica assim, portanto, estabelecida a relação entre o Tantra e o conhecimento ancestral dos Vedas, que é claramente não-dual.

É verdade que o Tantra resgata elementos ancestrais, que datam do culto à Magna Mater, a Grande Deusa, cujos elementos estão presentes ao longo do continente eurasiático desde o paleolítico. Há alguns meses foi achada na Alemanha mais uma escultura da Grande Deusa feita de marfim de mamute, que data de pelo menos 35.000 anos atrás, batizada “Vênus de Hohle Fels”. No entanto, não devemos pensar que a literatura do tantrismo seja oriunda daquela recuada data. Aquilo que chamamos Tantra, segundo o estudioso Mircea Eliade (Yoga: Imortalidade e Liberdade, pág. 171), surgiu entre os séculos IV e VI da nossa era. Admite-se atualmente que os textos daquilo que conhecemos hoje como Yoga tântrico tenham surgido a partir do século IX d.C. Dentre eles, os mais importantes são o Kularnava, o Kalachakra, o Guhyasamaja, o Vishvasara, o Sadhanamala, o Mahanirvana Tantra e o Satchakra Nirupana, este último atribuído ao sábio Purnananda Swami de Assam, e datado do século XVI. Ou seja, todos estes textos são muito posteriores, mas muito mesmo, à obra de Patañjali, que data do século IV a. C.


O Yoga “tântrico”, antes de Patañjali.
Se, por outro lado, continuarmos nossa procura pelo Yoga de inspiração “tântrica” nas Upaniads, iremos nos encontar com algo muito parecido com ele na Shvetashvatara, a “Upanishad do Cavalo Branco” (shveta = “branco”, ashva = “cavalo”), uma das primeiras e mais importantes. Vejamos alguns poucos trechos deste shastra: “Mantendo o corpo firme, como as três partes eretas [tronco, pescoço e cabeça], o sábio dirige os sentidos e a mente ao interior do coração. Brahman é o barco em que ele atravessa o rio do medo.” (II:8). “Controlando sua força vital (prana), com seus movimentos controlados, o sábio inspira pelas narinas, com a respiração restringida. Livre de distrações, que ele controle sua mente, como o condutor controla os cavalos rebeldes.” (II:9). “Não conhece doença, velhice nem sofrimento aquele que forja seu corpo no fogo do Yoga. Atividade, saúde, libertação dos condicionamentos, circunspeção, eloqüência, cheiro agradável e pouca secreção, são os sinais pelos quais o Yoga manifesta seu poder.” (II:12-13).

O primeiro parágrafo faz clara alusão à importância do alinhamento postural durante a prática de Yoga. Uma das maneiras mais eficientes de se manter a conexão com o coração mencionada no texto, é justamente cultivando-se uma postura ereta e relaxada. A segunda citação deixa clara a conexão entre pensamento e respiração, outro dos temas fundamentais do Hatha. Essa conexão aparece de forma clara na Hatha Yoga Pradipika (II:2): “Enquanto a respiração (prana) for irregular, a mente permanecerá instável; quando a respiração se acalmar, a mente permanecerá imóvel e o yogi conseguirá a estabilidade. Por conseguinte, deve-se controlar a respiração [praticando-se o pranayama]”. Em outro trecho (IV:21), a mesma obra afirma: “Aquele que detém o alento, detém também o pensamento. Aquele que domina o pensamento, domina igualmente o alento.”

A idéia de forjar o corpo no fogo do Yoga, presente no terceiro trecho aqui citado, é central à prática do Hatha, que busca a transubstanciação do corpo mortal em um corpo divino, com a dureza do diamante (vajradeha). Essa idéia está presente na Gheranda Samhita (I:24): “Assim como um jarro de argila crua, jogado neste mundo, o corpo decai rapidamente. É preciso endurecé-lo, forneando-o no fogo do Poder, para fortalecé-lo e purificá-lo”.

A “vitória” sobre o sofrimento, a velhice e a morte também é um tema recorrente na literatura do Hatha. A lista dos benefícios advindos da prática que aparece na Shvetashvatara Upanishad é similar em tom e conteúdo a muitas outras que aparecem nas obras posteriores: “A perfeição do corpo físico [manifesta-se como] beleza, graça, força, e a dureza e o brilho do diamante”, Yoga Sutra de Patañjali (III:47).

“Quando se aperfeiçoa o Hatha Yoga, aparecem os seguintes sinais: agilidade física, brilho no rosto, manifestação da vibração sutil interior (nada), olhar penetrante e claro, saúde, controle do fluido seminal (bindu), aumento do fogo digestivo e total purificação das nadis”. Hatha Yoga Pradipika, II:78. Em outro trecho (III:30), esta mesma obra diz que certas práticas do Yoga “protegem contra a morte e a velhice, aumentam o fogo gástrico e proporcionam poderes paranormais (siddhis).”

A Katha Upanishad (II:3,16), um dos mais antigos textos de Yoga de que temos conhecimento, descreve um fenômeno curiosamente similar ao da ascensão de kundalini ao longo do eixo central da coluna vertebral, conforme descrita nos textos tântricos posteriores: ““A partir do coração, surgem os cento e um caminhos (nadis) da força vital. Um deles conduz ao topo da cabeça. Esse caminho conduz à imortalidade. Os outros, à morte”.

Desfazer o anáhata granthi, o “nó” energético do chakra cardíaco, é outro processo ligado ao despertar de kundalini que aparece citado na mesma obra (II:3,15): “Desfazendo os nós que estrangulam o coração, o mortal torna-se imortal. Essa é a síntese dos ensinamentos das escrituras”.

Da mesma maneira, a Maitri Upanishad indica a prática de pranayama como o meio mais importante para se alcançar a estabilidade da mente. O texto chega a mencionar a prática que seria conhecida posteriormente como khechari mudra, que consiste em recolher e elevar a língua, pressionando-a no palato mole, como forma de evitar que o bindu, néctar lunar, se disperse a partir do soma chakra. Esta é uma das principais práticas dos Yogas tântricos, como o Hatha e o Laya Yoga. Nesse sentido, concluímos que o Yoga tântrico não está separado nem é diferente de outros métodos como o Mantra ou o Ashtanga Yoga. Essas formas de Yoga, bem como outras não mencionadas, se entremeam e interpenetram num grau tão profundo que é quase impossível diferenciá-las.


De volta ao Yoga Sutra.
Como o amigo leitor já deve saber, o Yoga Sutra não é um texto para iniciantes. Assim sendo, o estilo em que está escrito evita, dentre outras muitas coisas, a descrição detalhada do processo do despertar de kundalini, bem como deixa de mencionar listas completas de itens como os cinco pranas, os sete chakras, etc. No entanto, as meditações e diferentes maneiras de usar chakras, nadis e pranas, estão listadas no terceiro capítulo, enquanto que a manipulação da energia vital (prana) e o fruto dessa prática, aparece com detalhes no fim do segundo capítulo. O manipura é chamado nabhi chakra ("chakra do umbigo", III;30), o anahata é chamado hrdaye ("do coração" III:34), o vishuddha é chamado kantha kupe ("poço" da garganta, III;31), o sahasrara é chamado murdha jyoti ("luz [que brilha] na cabeça", III, 33). Patañjali propõe, no sutra III:32, uma meditação na kurma nadi.

O primeiro dos sutras acima mencionados diz: “[Meditando sobre] o chakra do umbigo, ganha-se conhecimento sobre a estrutura do corpo.” O segundo ensina: “[Aplicando samyama na] região do coração [anahata chakra], o yogi adquire conhecimento de sua própria consciência”. O terceiro: “[Exercendo samyama sobre] o centro da garganta [vishuddha chakra], cessam a fome e a sede”. O quarto aforismo reza: “[Meditando na] luz do alto da cabeça [sahasrara chakra] obtém-se a visão dos siddhas, [seres que atingiram a perfeição]”. O último dos acima citados diz: “[Pelo samyama sobre] kurmanadi (meridiano da “tartaruga”, na traquéia), o yogi estabiliza seu corpo”. A kurma nadi, ou meridiano kurma, é o condutor do kurma vayu, a força vital responsável pela visão, o piscar dos olhos e a estabilidade, tanto corporal quanto emocional e mental. Ela é localizada entre a traquéia e a parte posterior da depressão jugular. O kurma vayu é bem conhecido na tradição do Yoga tântrico: uma menção a ele aparece na obra The Serpent Power (O Poder Serpentino), de Sir John Woodroffe (p. 78).

O prana é mencionado em I:34: “Ou, pela expiração e a retenção do prana [a mente pode igualmente estabilizar-se]”. O udana vayu, um dos cinco pranas, bem conhecidos pelos praticantes de Yoga tântrico, está mencionado exatamente com esse nome em III:40: “Pelo domínio do ar vital udana desenvolve-se o poder de levitação sobre a água, o lodo, os espinhos e demais”. Há uma série de cinco sutras, começando em II:49, que menciona explicitamente o processo de manipulação do prana através do pranayama, que curiosamente culmina numa interessante descrição da visão da “luz interior” (prakasha). Eles são os seguintes: “O pranayama consiste na regulação da inspiração e da expiração. [O pranayama consta de] modificações externas, internas ou retenção [da força vital]. É regulado por lugar, estação e número [e torna-se progressivamente] mais prolongado e sutil. O quarto tipo [de pranayama, chamado kevala kumbhaka] transcende as esferas interna e externa. Assim, dissipa-se o véu que encobre a luz [do conhecimento]... e a mente torna-se apta para a concentração”.

Até onde sabemos, kundalini ativa, dentre outras formas, se manifesta como uma luz brilhante, exatamente como descreve o texto acima. Devemos considerar que a descrição deste fenômeno nos Sutras seja apenas uma coincidência, em relação ao processo de despertar de kundalini que o Yoga tântrico ensina? Depois de estudar este texto com atenção, podemos concluir que o sábio Patañjali sim, menciona no Yoga Sutra os temas chakras, nadis e prana. Portanto, como praticantes de Yoga tântrico, acredito que não devamos desconsiderar o que Patañjali tem a dizer sobre aquilo que praticamos.

Afirmar o contrário é teimar em separar e ver de forma parcial e compartimentada uma tradição muito ampla e única, que se manifestou ao longo dos milênios de diversas maneiras e através de diversas linguagens simbólicas. Espero, com este texto e as comparações que ele apresenta, ter contribuído para o aprofundamento da correta compreensão dessa vasta, única e profunda corrente tradicional que é o Yoga. Acredito que, para essa compreensão, é de imensa utilidade perceber a continuidade dessa tradição para além das diferentes linguagens simbólicas que foram usadas ao longo do tempo para transmiti-la, ao invés de nos centrar nas diferenças, rótulos e métodos, que podem criar abismos entre os praticantes. Namaste!"



Autor: Pedro Kupfer - 01 de Janeiro de 2010
Fonte: www.cadernosdeyoga.com.br

Nenhum comentário: